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sexta-feira, 1 de março de 2013

Economia, ciência e política

É verdade que, nos últimos anos, salvo as notícias de choque e as questiúnculas políticas, o debate público tem estado fortemente polarizado nas questões económicas. Alguns reclamam contra tal afunilamento, mas não é certo que tenham razão.
Parece não haver actualmente um conflito agudo para resolver na cena internacional: nem a questão do terrorismo dos islamitas radicais suscita as mesmas emoções de há anos atrás; nem o “eterno” problema da Palestina parece urgente; nem o “Sul” do planeta reclama hoje tanto contra o “Norte”; nem o gigante norte-americano é visto como ameaçador para alguém; nem, enfim, as questões ambientais gozam da atenção que já despertaram.    
Por outro lado, nenhum grande projecto societal de futuro – com uma ideia diferente de sociedade, de Estado, de cidade, de modelo económico ou de relacionamento interpessoal – emerge do nosso quotidiano ou é avançado com credibilidade e suficiente aceitação por um qualquer novo movimento social. As igrejas defendem-se ou retornam ao seu básico. Os nacionalismos esbateram-se um tanto e são, por natureza, fraccionados. E os socialismos ainda não recuperaram do KO do regime criado por Lénine.
Apenas a situação chinesa nos mantém suspensa a expectativa de uma grande mudança, progressiva ou traumática, pelo papel que pode ter nas próximas décadas, tanto no plano da economia mundial como no da sua hipotética implosão política.
Nestas circunstâncias, com a crise desencadeada a partir de 2008 e que tem atingido tão duramente a Europa, não custa perceber o porquê dessa concentração da discussão público sobre os temas económicos.
Mas será isto um empobrecimento assim tão grande quanto alguns o querem fazer crer?
Houve, de resto, um profeta socialista que afirmou que o melhor sinal da emancipação humana seria dado quando “o governo dos homens pudesse dar lugar à administração das coisas”. Num certo sentido simbólico – que até pode significar o inverso dessa famosa antevisão –, não será aí que hoje nos encontramos? A “administração das coisas” (leia-se: a gestão da economia) não se sobrepõe hoje ao “governo dos homens”  (no passado associado à guerra ou ao despotismo, e que a democracia impede que se possa continuar a falar em opressão)?
De facto, não é uma heresia dizer que a economia é uma relação social – não necessariamente no sentido marxista da exploração-do-homem-pelo-homem e da alienação das relações humanas pela intromissão da mercadoria (ou do dinheiro) mas talvez, diversamente, pelo facto de, pela primeira vez na história, o sistema económico ter efectivado a criação de uma linguagem e um padrão de medida universal, superando as etnias, as línguas, as religiões e as nações. É facto que, nestas relações, subsistem notórias desigualdades, entre ricos e pobres, com muito ou quase nenhum poder, dando lugar a exercícios de dominação aberta ou escondida. Mas já não há grande espaço para as diferenças definitivas atribuídas por nascimento (por condição de classe social ou de país) e que subsistiram ao longo de séculos, até à nossa época. As desigualdades económicas e sociais são ainda gritantes mas, em certa medida, vividas como sendo passíveis de alguma evolução (para melhor) na expectativa de vida de cada pessoa.
Neste tópico, os direitos humanos da modernidade – não na sua exploração instrumental partidística, mas como princípios orientadores para uma universalidade mais avançada – são um excelente estímulo para travar os aspectos socialmente mais negativos ou injustos do funcionamento da economia, tal como ela se tem vindo a configurar.   

Há muitas vozes que hoje se viram contra os economistas, também pelo facto de estes não terem sabido prever a crise geral em que nos encontramos. Esta atitude revela desconhecimento ou uma inconsciente vontade de encontrar bodes expiatórios. Estou a meter a foice em seara alheia mas, se não erro, a ciência económica é uma ciência social (porque diz respeito a regularidades do comportamento humano) que usa exclusivamente métodos matemáticos para as suas análises. Assim sendo, o rigor do seu quantitativismo só pode, de facto, ser exigido quanto a fenómenos passados, e, ainda assim, desde que existam os necessários registos de qualidade e as categorias analíticas estejam correctamente estabelecidas e inter-relacionadas. Quanto ao futuro, a sua capacidade preditiva assenta, no essencial, em projecções estatísticas com base nas tendências observadas no passado recente (um pouco como as previsões meteorológicas a mais de três dias…). Ou seja: et cetera paribus (se tudo fosse como até aqui).
Ora, os dados que os economistas analisam restrospectivamente são os que, em cada dia que passa, resultam de milhões de decisões singulares, desde os decretos governamentais até aos actos de consumo de cada um de nós. Uma nova lei, uma alteração de taxa de juro, uma decisão de investimento, um pânico bolsista, uma “corrida” bancária, um facto político ou uma catástrofe ambiental podem alterar consideravelmente “o que estava previsto”, agravados por tudo isto poder subir agora à escala mundial num lapso de tempo mínimo.  
E aqui entronca a primeira grossa interferência entre economia e política. O Estado figura entre os principais agentes económicos, sempre que toma “medidas de política económica” (quando fixa um salário mínimo, cria um imposto, orçamenta as suas próprias despesas, etc.), mas não só. É que, pelo efeito da enorme centralização dos poderes públicos num único órgão de topo governamental, as decisões deste, mesmo aquelas que são aparentemente mais distantes, têm quase sempre um efeito económico.
Por estas razões, a vida política em regimes de liberdade, com as suas próprias dinâmicas, acontecimentos e inversões de tendência (por vezes, súbitas), constitui um enorme factor de indeterminação para as projecções que possam fazer-se acerca da evolução dos indicadores económicos.     

Simetricamente, a vida política actual, cujas regras de convivência não-escritas são frequentemente sujeitas a “torpedeamentos” e armadilhas para estabelecer novos limites, usa a economia como instrumento de confronto diário. Do lado dos governos, são brandidos apenas os números que parecem mais favoráveis à sua imagem de defensor do bem-comum, quase sempre ocultando os interesses em que realmente se apoiam. Por banda das esquerdas, busca-se frequentemente a legitimação das suas políticas alternativas numa suposta garantia que lhe seria dada pela ciência (económica).
No caso presente, agora em postura de oposição, vem-se forçando o contraste das suas propostas com o “fundamentalismo ideológico” das políticas liberalizantes seguidas pelo executivo, sem se reparar quão ideológica também é a crença no Estado democrático como meio de realização do interesse geral. No último ano e meio têm surgido diversas iniciativas de personalidades e grupos com este cariz, das quais a mais recente terá sido a conferência “Economia com Futuro”.
É certo que, em alguma medida, existe genuína dúvida entre vários caminhos para alcançar registos de prosperidade e distribuição de bem-estar social: investimento público com maior ou menor endividamento; abaixamento de impostos para estimular o investimento privado; flexibilidade e garantismo no emprego; etc. Mas é justamente aí que o “partidarismo” se insinua, para avivar as diferenças e silenciar o que seja menos conveniente, distorcendo os termos do debate.
De facto, nesta cena pública mediatizada, todos fazem política (partidária, “sectária” ou pessoal) usando os argumentos do interesse nacional, da realidade económica ou do conhecimento científico como forma de afirmação própria. Esbate-se com isso o facto dos vários protagonistas estarem todos eles envolvidos numa luta concorrencial pelo acesso ou conservação do poder.
Os dados da ciência, esses parecem estar a ficar cada vez mais desprovidos da auréola de “desinteresse”, isenção e autoridade que protegia o trabalho dos cientistas. Mas a culpa também é de muitos membros desta comunidade, que facilitam os intentos dos políticos ou já se esqueceram das sábias recomendações de um tal Max Weber que soube ser cientista e político, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.

JF / 28.Fev.2013

NB – Agradeço aos economistas José Manuel Moreira, Paulo Trigo Pereira, António Palhinha Machado, Teresa de Sousa (quando escreve sobre relações económicas internacionais), José Gomes Ferreira e Nicolau Santos o que sempre tenho aprendido com as suas intervenções públicas.

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