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domingo, 23 de novembro de 2014

“Secções”, “células”, “grupos”

Como em qualquer associação livre, os indivíduos determinados em exercer um certo tipo de acção política colectiva organizam-se em estruturas elementares, mais ou menos formalizadas, geralmente locais; onde, em todo o caso, eles se possam encontrar regularmente e directamente discutir, confrontar opiniões e concertar actuações viradas para uma determinada intervenção na vida política. Houve um interessante tempo de “clubes”; e outros menos interessante de “tertúlias”, à falta de melhor.
Em sociedades abertas, tais estruturas elementares integram-se em geral – mas não necessariamente – em estruturas mais vastas e complexas, quase sempre de âmbito nacional. Mas o grau de autonomia própria de que gozam pode variar imenso, o que permite uma grande diversidade de funcionamento interno. É dessa variabilidade que aqui tratamos hoje.
Os partidos políticos organizam-se geralmente na base de “secções locais”. Este termo “secções” apareceu talvez em primeiro lugar durante a Revolução Francesa, na intensa efervescência que, durante os primeiros anos, agitou as classes populares parisienses, a par dos “clubes”, que eram cenáculos mais seleccionados onde se forjavam novas doutrinas, peroravam bons oradores e se discutia a “alta política”. Em contrapartida, as “secções” eram espaços mais abertos onde os citoyens se reuniam, bairro por bairro, para praticarem uma sorte de democracia directa, confusa, anárquica e igualitária, em que não se exigia qualquer credencial ideológica à entrada mas apenas a condição de residente e de “bom cidadão”, o que significava abjurar a Realeza e toda a panóplia dos “antigos direitos”, e de querer velar pelo salut publique e ajudar apaixonadamente a construção da República.        
Actualmente, as secções locais dos partidos são agremiações organizadas e geridas democraticamente, isto é, segundo a regra da maioria. Pelo voto maioritário dos filiados se escolhem os dirigentes da secção, para mandatos limitados no tempo, os quais se empregam durante esse período a despachar as tarefas burocráticas habituais de uma associação, a tentar responder à exigências vindas dos escalões superiores e às vezes a enfrentar questões que agitam os associados. Mas, frequentemente, as secções são locais desertos ou pouco frequentados até que cheguem as febris noites eleitorais ou algum plenário tempestuoso em que se tenta concluir sobre uma disputa interna ou se nomeia uma delegação que leve a um congresso ou a outra instância superior a posição da secção. Os debates são aqui pouco aprofundados, subordinados à lógica de, no final, se contarem os votos que apuram a deliberação maioritária. Os “vencedores” exultam; os “vencidos” aceitam desportivamente esse veredicto ou ficam a ruminar as causas ou as consequências da derrota, preparando já a desforra na oportunidade seguinte. O hábito destes encontros faz com que as pessoas se familiarizem um tanto umas com as outras, porém dentro de marcas de alguma distendida cortesia. Mas os choques de opinião ou comportamento, a veemência de alguns debates, também deixam muitas vezes ressentimentos duradouros ou “estimáveis inimizades”. O exercício de funções electivas e as eventuais manobras menos claras para as alcançar; ou a especial habilidade argumentativa ou carismática para convencer terceiros que uns pouco revelam, também desencadeiam frequentemente entre alguns associados reacções de inveja ou de despeito.
A entrada de um novo postulante para a secção é sempre feita através de uma formalidade burocrática: preenchimento de um formulário de candidatura ou de uma declaração, frequentemente “abonada” pela assinatura de dois membros já integrados e, sobretudo, o pagamento de uma “quota” em dinheiro. Este é talvez o gesto administrativo – e, no fundo, também simbólico – mais significante da adesão e da participação de alguém na vida colectiva da secção. Pode estar sempre calado nas reuniões, ou até nunca pôr lá os pés; desde que tenha “as quotas em dia”, é um cidadão em pleno gozo dos seus direitos estatutários! Deste modo, também o desligamento da secção se materializa geralmente quando, ao fim de algum tempo sem o indivíduo pagar a sua contribuição financeira nem dar notícias, os responsáveis acabam por tomar a inexorável decisão de o considerar “extinto” – a menos que a separação seja litigiosa, com processos de expulsão ou protestos públicos do recalcitrante, ou que o afastado seja aquele género de pessoa cuidadosa que não se esquece de enviar uma cartinha justificando a sua decisão, invocando razões mais ou menos “de circunstância”, o que só acontece a espaços.
Estas características da “secção” correspondem, no fundo, às de uma qualquer outra associação de pequena escala, agrupando geralmente não mais do que algumas dezenas ou poucas centenas de sócios, quer as mesmas persigam objectivos políticos, sociais, culturais, desportivos, recreativos, etc. As características micro-sociológicas e a psicologia destas relações inter-individuais sobrepõem-se aqui aos fins declarados que motivam a existência da colectividade. E a única diferença evidente com as “secções” locais é a de serem completamente independentes e senhoras exclusivas das suas orientações.
No caso da “célula”, as coisas passam-se já de modo substancialmente diferente. É aqui forçoso que a célula esteja integrada num organismo partidário ou conspirativo vasto, normalmente de âmbito nacional, que lhe dita as regras de funcionamento, os objectivos da acção política e os critérios gerais da táctica a usar com os partidos adversários ou para a captação de novos apoiantes. Deste modo, a célula raramente surge por iniciativa dos indivíduos agrupados mas sim por “decisão superior”. Neste quadro, a função do “controleiro” ganha toda a sua importância: é por sua proposta ou parecer que a célula é oficialmente criada por um qualquer organismo responsável de escalão superior; é através dele – nomeado por essa instância e não eleito pelos membros da célula, ainda que deles deva obter aquiescência ou pleno reconhecimento – que a célula recebe as informações e as instruções necessárias para o desenvolvimento da sua acção; é ele que elabora os relatórios da actividade da célula, alguns discutidos e aprovados colectivamente mas outros “secretos”, ou pelo menos potencialmente queixosos das insuficiências da célula ou do “mau comportamento” de algum dos seus elementos; finalmente, é exclusivamente ele quem, le cas échéant, propõe aos órgãos partidários competentes a dissolução da célula ou a expulsão de algum dos seus membros, réu de actos ou de pensamentos ideológicos contrários à linha do partido ou mesmo suspeito de ser um “inimigo infiltrado”.
É por estas razões que uma estrutura política deste tipo configura aquilo que, em teoria das organizações, pode ser descrito como uma organização hierárquica “top-down”, que funciona de cima para baixo, em que as informações devem afluir da base (que está mais “em contacto com a realidade”) até ao topo, e as decisões descem desde o topo até à base, às “células”.
Em tais circunstâncias, a vida relacional, afectiva e emocional dos membros de uma célula fica substancialmente condicionada: o colectivo encontra-se muito fechado sobre si mesmo e protegido por essa barreira de isolamento que se cria entre “eles” e “os outros”; a adesão à ideologia ou linha política do partido constitui um factor de coesão interna essencial, funcionamento tanto mais eficazmente quanto mais aquele for minoritário (embora plausível) na sociedade e as suas posições a fracturem de maneira contundente; esta “fusão” e unanimismo são facilitados por mecanismos simbólicos vários que criam nos aderentes a ilusão de que cada um deles é um actor importante na organização e na propagação dos “ideais”, o que alimenta a auto-estima; mas, simultaneamente, o receio de “cair em desgraça” cria facilmente climas de suspeição que podem tornar-se irrespiráveis e “atitudes estratégicas” potenciadoras de delações ou de inibição de participação, franqueza ou confiança. Estamos, pois, próximos de uma militância de tipo maçónico ou religioso (mas sem receio de uma sanção divina) e de uma organização apta a sobreviver mesmo em condições sociais adversas, como acontece quando ela é objecto de banimento ou de perseguições políticas.
Por último, o “grupo” é, comparativamente às anteriores, a estrutura organizativa mais “fluida” e informal, também porventura a menos eficaz, em termos do balanço “input-output” que pode fazer-se entre os recursos aí consumidos (tempo, dedicação, trabalho, experimentação falhada de novos membros, etc.) e os resultados produzidos pela sua acção colectiva que podem ser percepcionados e recebidos no exterior do grupo pelas pessoas comuns ou o meio específico sobre o qual se foca a sua acção. Mas é seguramente a forma de agremiação de pessoas mais natural e espontânea, aquela onde cada qual se sente verdadeiramente ele, se sente bem consigo e com os demais… até ao dia em que o grupo “rebenta”, se cinde, perde o indivíduo liderante ou, simplesmente, o participante perde o gosto de continuar nele. Daí a sua duração ser muitas vezes curta, a sua composição numérica ser variável, em função dos que porventura vão entrando e saindo – mas não instável, porque o grupo, embora parecendo (e às vezes tornando-se mesmo), não é um mero “grupo de amigos”. Este, existe por si próprio apenas pelos laços afectivos ou de ideias comuns que existem entre os seus membros. Pelo contrário, o “grupo” – seja político ou dirigido para fins sociais, culturais, desportivos, etc. – existe em função de um determinado objectivo que aquele conjunto de pessoas se propõe atingir ou realizar em colectivo, pois que o mesmo não seria possível (pelo menos na mesma dimensão) obrando cada um por seu lado, sozinho. Mas, a partir daqui, o “grupo” tende a funcionar como um grupo de amigos, sendo plástico na divisão de tarefas internas e flexível na definição de metas e técnicas de acção.
Sendo essencialmente um espaço de interconhecimento pessoal, o grupo pode ser constituído apenas por meia-dúzia de indivíduos ou atingir uma escassa vintena. Mais não é possível, sob pena de perder as suas características e mudar de natureza; isto porque a personalidade própria de cada membro tem de ser reconhecida e plenamente aceite e respeitada por todos os outros. Tal não significa, porém, que se trate de uma unidade fechada ou unanimista. Pelo contrário, o “grupo” está permanentemente aberto ao exterior e aí reside uma das suas riquezas mas também a correspondente fragilidade: as clivagens ou conflitos existentes na sociedade (posições políticas, modas culturais, etc.) podem repercutir-se rapidamente no seu interior e afectar a sua coerência ou mesmo a sua existência. E é-lhe inerente uma certa tensão interna, uma “discussão” viva entre os seus membros que, quando deixa de ser factor de dinamismo para a acção colectiva, pode levar à sua dissolução a curto prazo, pois nenhuma “obrigação” exterior ou superior intima os membros a manterem-se unidos conta a vontade e o desejo de cada um deles. O “grupo de afinidade” dos anarquistas de há um século atrás (na acção política) ou o “grupo de garagem” dos jovens “rockistas” (na produção musical contemporânea) são dois dos melhores exemplos do “grupo”, enquanto estrutura de acção/organização que aproveita ao máximo as potencialidades criativas e de realização dos indivíduos modernos, e outros exemplos existirão na actualidade de campos de actuação e modalidades de funcionamento que raramente são conhecidos e divulgados, devido à sua atomização e “instabilidade”.
Justamente por causa disto, para remediar os parcos limites da sua influência sobre a sociedade, imaginaram alguns determinadas formas de cooperação inter-grupal. Na acção política ou onde a questão do poder social se coloca – com uns a sobreporem as suas ideias e interesses aos dos outros, supostamente seus pares –, desenvolveu-se o modelo do federalismo, entendido como uma forma de cooperação livre e igualitária que multiplica a acção local dos “grupos”, com o “princípio da subsidiariedade” a prevalecer sobre as ideias de concentração e de escala. Uma parte do sindicalismo trabalhador nos países latinos organizou-se inicialmente sob este modelo, tal como o movimento do cooperativismo de consumo. Mas o melhor exemplo de aplicação da ideia federalista no terreno social foi talvez o do movimento desportivo que, ainda hoje, se organiza formalmente na base de “associações regionais” a que aderem voluntariamente os clubes (aqui, o equivalente funcional dos “grupos”), as quais constituem a “federação” nacional (de cada modalidade de prática desportiva), que, por sua vez, instituíram um dia a federação internacional correspondente (que organiza as competições mundiais, fixa regras comuns para todos, etc.) e, teoricamente, a poderiam dissolver quando deixasse de ser precisa. Ou seja: o modelo organizativo do “bottom-up”, construído “de baixo para cima” (como a Europa política anda a tentar fazer-se).
Porém, aquele é também um exemplo elucidativo da perversão que pode frustrar qualquer modelo quando a lógica do poder prevalece sobre os objectivos e necessidades sociais. Nos clubes desportivos, como em outros domínios, o que vemos hoje são sobretudo casos de personalização e consolidação do poder do líder, apoiado numa clique ou numa vaga populista (designando um “adversário a abater”) e muitas vezes próximo ou disponível para práticas de corrupção.
De facto, não existem “modelos ideais” e (com excesso de pessimismo) pode dizer-se mesmo que “tudo o que é humano é corruptível”. Mas também tudo o que é humano é capaz de constantemente reagir contra esse estado de coisas e de inventar e experimentar novas soluções construtivas que respeitem a esfera de autonomia e a dignidade de cada um e, ao mesmo tempo, atendam às condições específicas da vida em sociedade, no seu tempo.
JF / 24.Nov.2014

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