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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Os Mandamentos judeo-cristãos e os fundamentos de uma moral laica de razoabilidade


Dentro de uma unidade fundamental, a Humanidade é diversa nas suas culturas e épocas históricas. Tal como as línguas e o sentimento de pertença a comunidades particulares, as religiões fazem parte dessa diversidade. Mas todas elas organizaram os seus códigos de conduta moral, apontando o que é considerado lícito e benfazejo, e condenando as atitudes ou intenções malévolas. A antinomia entre o Bem e o Mal é particularmente afirmada nas grandes religiões monoteístas ocidentais – o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – e tem sido criticada por certas correntes do pensamento laico moderno como causadora de alguma infelicidade entre os Homens, apontando o exemplo de religiões orientais como o Hinduísmo ou o Budismo onde tal não existe ou se apresenta de modo muito mais diluído, geralmente sob a forma de uma ascensão de graus de santidade ou de desprendimento das paixões materiais, passíveis de serem atingidos pelas pessoas.
Contudo, há quem não deixe de fazer a ligação entre estas religiões mais contemplativas e ascéticas e o sistema social de castas (rigorosamente separadas umas das outras) que desde antigamente predominaram nessa região da Ásia. Já o Confucionismo e outras formas de pensamento antigo surgidas na China distinguem-se da abstracção e espiritualidade hindu justamente pelo seu carácter concreto, mais de filosofia social do que religiosas, sem grande espaço para a metafísica ou o misticismo. Mas também aqui encontramos, de um lado as condenações e os interditos, e do outro os pensamentos e comportamentos virtuosos, que também parecem funcionais à preservação de certas hierarquias sociais. Por exemplo, nos ensinamentos de Buda estabelecem-se cinco preceitos de interdição: não matar (nem sequer os animais); não furtar; não tomar a mulher do próximo; não mentir; e não beber licor embriagador. E, segundo Confúcio, deve respeitar-se a memória dos antepassados, os filhos a autoridade dos pais, os pais cuidarem dos filhos como os soberanos dos seus súbditos e a mulher do seu esposo, mas todos alimentarem a amizade entre os iguais e procurarem a realização da justiça e do bem: “Não fazer jamais aos outros o que não quereis que vos façam!” Implicitamente, a identificação do Bem e do Mal também está aqui presente e, pouco a pouco, ao longo da história, esse binómio ético acabou por ser adoptado, na grande maioria dos casos, nas diversas formas de organização da sociedade e das suas constituições jurídico-políticas.
Dito isto, o princípio da realidade leva-nos a reconhecer que, pela força, pelo comércio e pela catequese, foi a cultura ocidental (originariamente judaico-cristã) aquela que mais transformou o mundo, acelerando o seu progresso material e impondo alguns dos traços principais das suas concepções de vida. Mas, possuindo (em relações a outros) a vantagem de admitir no seu seio alguma contradição e dissidência, este seu fundo religioso teve de aceitar, a partir de certa altura, a ascensão do espírito científico, da racionalidade, do laicismo e da secularização do poder, com a emergência do individualismo e da cidadania. Porém, a sua moral pública tem levado tempo e enfrentado dificuldades para realizar o ajustamento desta herança à Modernidade que vivemos desde há cerca de dois séculos. É desse processo que aqui nos permitimos fazer alguma leve discussão e especulação a partir dos dez Mandamentos judeo-cristãos, inscritos nas tábuas de Moisés e não repudiados pelo Cristianismo, face à procura de uma moral laica de razoabilidade adequada aos nossos tempos, por parte do pensamento moderno e contemporâneo.
Comecemos então por recordar em termos prosaicos os tais Mandamentos:
1º- Amarás a Deus, criador de tudo, acima de todas as coisas.
2º- Não adorarás outros deuses.
3º- Não invocarás o nome de Deus, justiceiro e misericordioso, em vão.
4º- Guardarás um sétimo dia de repouso em memória de Deus.
5º- Honrarás pai e mãe.
6º- Não matarás.
7º- Não cometerás adultério.
8º- Não roubarás.
9º- Não levantarás falsos testemunhos.
10º- Não cobiçarás as coisas do próximo.
Os quatro primeiros mandamentos consistem em formular um dever de reconhecimento, obediência e adoração de uma ordem superior divina. Como na maior parte das religiões, estes preceitos do Antigo Testamento hebraico referem-se a uma crença espiritual acerca da criação e destino do universo, do sentido da vida humana e da existência de uma entidade divina que tudo ordena e comanda. Tal ordenamento pode ter sido codificado por revelação ditada por Deus ou por uma intuição extraordinária de profetas como, entre outros, também foi o caso de Maomé, fundador do Islamismo. Só no Cristianismo existe a figura de um Deus humano, filho de Deus-pai, que desce à terra por um curto período e a partir de cujos discursos se veio a escrever o Novo Testamento. Mas, no antigo Egipto, o Faraó encarna a personagem de um semi-Deus. E em outras épocas existiram abundantes exemplos de monarcas governando “por vontade de Deus”.
Esta ideia de um Deus criador e omnipotente, com alguma irascibilidade e outras atitudes próprias dos humanos (caso do Judaísmo) ou mais doce e bom como nenhum terrestre pode ser (caso do Cristianismo), suscitou um pensamento filosófico crítico muito vigoroso no século XIX: Bákunine, por exemplo, afirmou em Deus e o Estado que «se Deus é tudo, o mundo real e o Homem são nada. Se Deus é a verdade, a justiça, o bem, o belo, a potência e a vida, o Homem é a mentira, a iniquidade, o mal, o feio, a impotência e a morte. Se Deus é o senhor, o Homem é o escravo». Este ateísmo ou agnosticismo fez alguma mossa nas sociedades ocidentais, a que correspondeu nas leis aí vigentes uma evolução gradual, separando primeiro as Igrejas do Estado e depois criando uma quase plena igualdade de direitos entre as várias confissões e remetendo as opções religiosas ou filosóficas para o foro íntimo de cada indivíduo. Mas o factor que mais terá contribuído para a descristianização e laicização desta região do mundo foi o desenvolvimento científico e técnico que tem feito progredir maravilhosamente o nosso conhecimento do universo e, de forma indirecta, o crescimento da economia, cujo bem-estar proporcionado a populações sempre mais vastas tende a distrair as pessoas comuns dos questionamentos humanos e morais mais fundamentais.  
Os três mandamentos seguintes – respeitar os pais, não matar, e não cometer adultério – procuram, no conjunto, assegurar a convivência, o prazer sensual e a reprodução, especificando-se que: no 5º se busca a sustentação de um compromisso de descendência e integração inter-geracional; no 6º impõe-se o princípio de preservação e respeito pela vida humana e de conquista da paz; e no 7º intenta-se obter a fidelidade e uma sacralização da aliança matrimonial, pela canalização do afecto e o controlo do apetite sexual.
De facto, duas ideias são aqui estruturantes. A primeira é a condenação do homicídio e a elevação do valor da paz e da convivência entre os humanos. A Bíblia, por exemplo, está cheia de mitos girando em torno da pessoa que mata o seu próximo: Caim, filho do primeiro casal, mata o seu irmão Abel; e o próprio Deus Jeová põe à prova a obediência de Abraão ordenando-lhe que sacrifique o seu único filho Isaac. Estas são narrativas imaginadas para evidenciar o valor da vida. Mas também revelam que as sociedades de então lidavam com a morte e a violência como meio acessível não apenas para assegurar a sobrevivência num mundo de enorme escassez, mas também para dar vazão a muitas das “paixões humanas”: o poder, a inveja, a cobiça, o ciúme, etc.
A segunda ideia-matriz é a de dar uma base sólida, sacralizada, à aliança matrimonial entre um homem e uma mulher que, com seus filhos, devem constituir uma família. Também aqui a Bíblia refere vários casos de Fulano que “se deitou” com Beltrana, a começar pelo conflito na descendência de Abraão entre o filho da mulher (Jacob, de Sara) face ao filho da escrava (Ismael, de Agar) e outras hesitações quanto ao número de mulheres que cada homem pode “tomar”, até se fixar no modelo do casal único.  
Precisamente, a questão do controlo das pulsões sexuais teria certamente um lugar central nas condições civilizacionais de então, não já “primitivas”, uma vez que se verificava a existência de um pensamento racional e sistematizado, mas “antigas”, no sentido da violência constituir uma realidade omnipresente, e “humanas”, dado que já estávamos numa fase em que existem religiões organizadas, expressões artísticas sublimes e poderes temporais guiados por lógicas de comportamento racionalmente entendíveis. Neste sentido, a família nuclear encontra aqui um fundamento vinculativo muito forte e com efeitos duradouros através dos séculos, enfrentando práticas e pulsões muito resistentes a esta “regra”, mas que todavia nos parece constituir um verdadeiro marco civilizacional (aperfeiçoado modernamente quando se estabeleceu a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres), pela criação de condições de intimidade, responsabilidade, afecto, estabilidade e (relativa) satisfação sexual dos nubentes, ao mesmo tempo que de sustentação, conforto e carinho para a vida inicial dos filhos. Neste aspecto, esta disciplinação dos impulsos naturais que teriam livre curso há dois ou três mil anos atrás na região do oriente mediterrânico terá constituído uma verdadeira medida de “higiene e profilaxia social”, aliás paralela àquela imposta mais tarde (no século VII DC) pelo Al-Corão inspirado pelo Deus Alá a Maomé e por este ditado a Ali e a Zeid, que passou a prescrever um máximo de quatro mulheres que cada homem podia ter (quando o próprio profeta teve nove): numa região aqui desértica e inóspita como é a Arábia, em que a vida dependia economicamente da pastorícia e do comércio, e onde o roubo e a violência eram práticas correntes, fixar em quatro o número máximo de esposas de um muçulmano (crente e preocupado com a salvação da sua alma no Além) poderá ter sido o modo pragmático de obter a paz, o entendimento e o afecto mais convenientes para satisfazer os apetites do homem, a realização das mulheres e a educação dos filhos.
Finalmente, os três últimos mandamentos estabelecem normas de conduta social respeitadoras da individualidade, da propriedade e da verdade. São princípios muito fortes e estruturantes, que se situam já num plano lógico de relacionamento entre iguais e indistintos membros da sociedade. Já não falamos de relações entre pais e filhos ou entre deuses e humanos mas sim de vizinhos, mercadores, viajantes, trabalhadores ou estrangeiros, e dos Homens em geral. O “bom nome e reputação” refere-se a um processo social frágil, delicado e pouco controlável que, então como hoje, pode atingir gravemente o amor-próprio de cada indivíduo sempre que exista um sentimento de injustiça profunda. (E aqui ocorre pensar nos numerosos casos de “repúdio” de que a Bíblia nos fala, ou no “banimento” que a história identificou como uma sanção social, quiçá aquém, quiçá pior do que a própria morte).
Por seu lado, com a referência bíblica à cobiça das coisas alheias e ao roubo (que tenta prevenir), evidenciam-se as consequências nefastas da desigualdade económica e dos apetites incontroláveis pela posse de bens materiais e o enriquecimento. Todas as constituições que procuram regular a vida de uma sociedade incluem disposições normativas a este respeito. Mas foi preciso esperar pela dessacralização do poder e pelo século XIX para que um conjunto de doutrinas – da “escola socialista” – ultrapassasse a mera elucubração filosófica ou literária das “cidades utópicas” e formulasse uma teoria e uma estratégia de implantação de uma sociedade (tendencialmente global) onde a propriedade individual fosse confinada a uma esfera limitada, “quase privada”, e os principais meios de produção da riqueza material fossem de apropriação e gestão colectiva, quase sempre atribuídas a funcionários e dirigentes do Estado. O desastre económico e social que resultou da concretização destas macro-experiências radicais, já no século XX, deveria aconselhar-nos a encarar com prudência esta questão da propriedade privada que, objecto de regulação desde aqueles tempos tão antigos e precários, voltou a ser socialmente consagrada na Modernidade – por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 –, embora com regras específicas e muito variadas, que tanto procuravam evitar as barbaridades praticadas em longos séculos da era medieval e prolongadas até mais tarde pela escravatura, como procuravam atender às novas condições económicas e jurídicas resultantes da economia industrial que veio a envolver o mundo inteiro. De facto, a propriedade está no âmago da economia, de cujo funcionamento depende maioritariamente o bem-estar de uma população, mas também entronca na esfera da autonomia própria dos indivíduos e nas relações inter-individuais, e como tal deve ser regulada pelos sistemas jurídicos. Mas só na era contemporânea esta realidade se tornou evidente para muitas pessoas, quando as religiões, primeiro, e as ideologias políticas, depois, perderam muito da sua influência e credibilidade, ao mesmo tempo que os interesses presentes na economia e nos poderes (ainda que apodados de democráticos ou populares) se foram apresentando aos nossos olhos sempre um pouco mais desmascarados.
Na decorrência daqueles Livros Sagrados, a inventiva e capciosa produção de teólogos e doutores de leis veio a forjar inúmeras regras de disciplina e comportamento ético para crentes, não-crentes e confessos. Para os judeus, a seguir à Thora e ao Pentateuco, são também reconhecidos e observados outros escritos que vieram regular actos de culto, relações civis, alimentação e festas comunitárias. No caso do cristianismo, a partir da fase da institucionalização da sua Igreja como poder espiritual mas também temporal, na Roma tardia, papas e concílios legislaram abundantemente, criaram tribunais impiedosos e, em contrapartida, viveram cismas e exclusões, cruzadas e guerras intestinas. A organização da própria Igreja tornou-se complexa (direito canónico) e avassaladora, por via do entrecruzamento de bispados, ordens, conventos, ermitas e missionários com os deveres de um poderoso Estado secular, que se erigiu mesmo durante alguns séculos em entidade política reguladora das relações diplomáticas entre reis e príncipes da Europa. E no caso do Islão, foi o próprio profeta Maomé que se armou desde logo em chefe militar e criador de um Estado, assente em Medina, génese que muitos vêem como o “pecado original” intolerante e belicista desta religião, apesar de a mesma conter também regas de sensibilidade e delicadeza (Adab) que ajudam a organizar a vida social. Mas as cinco obrigações fundamentais do islamista são em tudo semelhantes às de judeus e cristãos: só há um Deus, Alá, sendo Maomé o seu profeta; as cinco orações diárias orientadas para Meca (prática que, como as todas as outras religiões, pretende disciplinar o corpo, o espírito e o tempo dos Homens, obrigando-o a virar-se para si próprio, ao menos por uns momentos); o pagamento de uma esmola (que é o substituto de um prosaico imposto, para sustentar o Estado ou o clero da Igreja); a observância de um jejum ritual (o ramadão) que, de novo, combina intenções e efeitos psicológicos e sanitários; e, finalmente, o dever de uma peregrinação (a Meca).
Estas regras “de segunda ordem” foram, em muitos casos, tão ou mais eficazes do que as “leis divinas” para fazer penetrar nas práticas sociais e na mente humana algumas orientações fundamentais de civilidade. Por exemplo, na tradição católica, pontos enfatizados no Catecismo como “Amar o próximo como a si mesmo” constitui um princípio de reciprocidade, que visa combater o egoísmo natural dos seres humanos. Já a obrigação de “Guardar castidade” (por pensamentos, palavras e obras?) em determinadas circunstâncias – fora do matrimónio, cumprindo os votos voluntários de dedicação exclusiva a Deus, etc. – constituiu uma interdição compreensível para essas épocas pelas razões já apontadas (controlo da pulsões naturais, aprendizagem dos limites pelo sacrifício, etc.) mas cuja eficácia e efeitos perversos seriam altamente discutíveis. Já a condenação de tentações ou sentimentos como a luxúria (versus abstinência), a ira (versus mansidão), a gula (versus temperança), o orgulho (versus humildade), a vaidade (versus modéstia), a inveja (versus generosidade) e a cobiça (versus desprendimento), que foram considerados como os “sete pecados mortais”, podem ser entendidos como referências tendentes a facilitar uma vida comunitária harmoniosa, não fora a perspectiva do castigo divino (definitivo) que lhes estava associada e que, por essa via, contribuiu imenso para sentimentos de remorso e culpabilidade que afligiram escusadamente milhões de indivíduos.
Pelo balanço indeciso que pode entrever-se entre esta “produção de pesadelos” para os humanos, a sua progressivamente melhor integração na sociedade e os momentos de felicidade e paz que também indubitavelmente proporcionou a outros milhões de pessoas, não sou hoje capaz de subscrever inteiramente a frase de Bertrand Russel de que, em geral, a religião (neste caso, a cristã) “santificou o ódio e a intolerância”. Mas, com a Modernidade, chegou realmente uma época em que a vida dos indivíduos em sociedade já não se rege quase exclusivamente, nem pela força (e o medo que ela induz), nem pelos preceitos difundidos pelas Igrejas. Contudo, excepção feita à crença numa entidade divina e a certos aspectos da aliança matrimonial, os restantes preceitos morais destes Mandamentos antigos parecem ser, não só plausíveis para guiar os comportamentos do Homem moderno, mas talvez mesmo os mais equilibrados e razoáveis, sobretudo se forem acompanhados por alguma racionalidade e positividade derivadas do conhecimento científico.  
Jean-Marie Guyau (filósofo e escritor francês, 1854-1888) publicou três anos antes da sua morte um livro com impacto nos meios cultos – lido e comentado por Nietzsche, por exemplo – que veio a ter edição em Portugal em 1919, sob o título directamente traduzido do original de Ensaio de uma Moral sem Obrigação nem Sanção, pela casa editora Guimarães, de Lisboa, numa tradução de José M. Cordeiro.
Trata-se de um típico texto oitocentista, filiado nas ideias progressistas da época, que haviam proclamado com estrondo “a morte de Deus” e que as religiões eram “o ópio do povo”. Embora discutindo as suas questões à maneira dos filósofos e dos juristas, despontam no livro ligeiras referências e argumentos que têm por base o conhecimento científico então já em grande desenvolvimento mas, no caso das ciências sociais e humanas, ainda sem auto-reflexão epistemológica, metodologia de investigação e disciplina de argumentação suficientemente amadurecidas: verifica-se isso com a psicologia e a sociologia nascentes, os conhecimentos médicos, uma leitura da história extremamente orientada por preconceitos de vária ordem e uma antropologia social em maturação, paredes-meias com a teoria de evolução e as quereles do naturalismo darwinista com as doutrinas religiosas ocidentais, ainda solidamente implantadas na sociedade.
O autor mostra-se bem informado sobre a bibliografia do seu tempo. Por exemplo, refere e sustenta em defesa da sua “tese” o seguinte: «Entre os trabalhos recentes sobre a moral, os três que, por diferentes títulos, nos parecem mais importantes são: em Inglaterra, os Data of Ethics, de Spencer; na Alemanha, a Phénoménologie de la conscience morale, de M. de Hartman; em França, a Critique des systèmes de morale contemporains, de Alfred Foullée. Dois pontos parecem-nos sobressair ao mesmo tempo da leitura destas obras de tão diferente inspiração; por um lado, a moral naturalista e positiva não fornece princípios invariáveis, quer em matéria de obrigação, quer em matéria de sanção; por outro lado, se a moral idealista pode fornecê-los, é a título puramente hipotético e não assertórico. Por outras palavras, o que pertence à ordem dos factos não é universal, e o que é universal é uma hipótese especulativa, Resulta daí que o imperativo na qualidade de absoluto e categórico desaparece dos dois lados. Nós aceitamos por nossa própria conta este desaparecimento, e em vez de lamentar a variabilidade moral que em certos limites daí resulta, consideramo-la, pelo contrário, como a característica da moral futura.» (op. cit., p. 13). Ideias semelhantes aparecem em escritos de Kropótkine (vg A Moral Anarquista, com uma edição recente, de 2009) ou de Eduard Carpenter em Prisões, Polícia e Castigos (ed. port.ª da Biblioteca de Educação Nacional de 1910).
Este tipo de argumentação também se transferiu para boa parte do pensamento socialista e para as discussões técnicas dos juristas penalistas. Alguma da propaganda militante de esquerda passou a encarar o crime e os criminosos como “produtos de uma sociedade iníqua”, consequência do capitalismo. E quando os seus partidos assumiram posições governativas, actuaram em consequência, além de que amnistiar crimes sempre foi um gesto habitual em qualquer poder que deseje ser popular, e, como na Bastilha, em mais de uma revolução arrombaram-se as portas das prisões e soltaram-se os presos. De facto, as prisões eram enxovias e “escolas do crime” e careciam de ser humanizadas para poderem tornar-se espaços e trajectos de reinserção social, mas talvez se tenha passado “do oito para o oitenta”. A própria doutrina criminalista evoluiu, não apenas abrandando a generalidade das sanções como também aceitando atenuantes e justificações que antes eram ignoradas. Mas não parece estar no horizonte a sociedade pacificada, sem crimes nem prisões, imaginada há um século por pensadores “utopistas”, ou apenas substancialmente reformada.
Saltando daqueles discursos muito eruditos e elaborados ou dos seus aproveitamentos propagandísticos para o ethos – a moral prática – das sociedades Antigas e Modernas, na sua fantástica evolução, podemos alinhar três ou quatro ideias simples conclusivas, mas evidentemente provisórias.
- Na sua versão ocidental, as comunidades humanas procuraram sempre regular e controlar socialmente os ímpetos e paixões individuais no sentido de obter uma convivência rotineira aceitável entre as pessoas (laços de família e vizinhança, trabalho, comércio, etc.) e contrariando a agressividade e a luta natural de “todos contra todos”, no quadro do que era então um ambiente ecológico frequentemente hostil e de grande escassez de meios de sobrevivência. A forma antiga como isso foi conseguido foi através da elaboração simbólica de grandes narrativas religiosas que colocavam, acima de tudo e de todos, a existência de um Deus criador, justo e bondoso. Ao mesmo tempo, o fenómeno da guerra e das lutas de poder canalizavam para tais espaços e momentos o maior potencial de violência existente no género masculino da Humanidade.
- Com o rompimento destas duas principais “fontes de ordem” – a Igreja e o Estado – e a consagração pública de regimes assentes na liberdade e na cidadania abriu-se um cenário de crise também no que tocou às concepções do lícito e do ilício, do bem e do mal, “do crime e do castigo”. Desde o século XVIII que se debate em vários planos e registos se o Homem é fundamentalmente bom ou, por vezes, intrinsecamente mau. Mas nem a evolução social, nem a doutrina criminal, nem as ciências do Homem que entretanto floresceram puderam responder cabalmente a estas questões.
- A crença íntima na existência de uma entidade divina ou num sentido superior que comanda a vida dos Homens é um facto social e um direito inalienável, tão legítimo como a convicção positiva de que o Universo e o Homem resultaram de acasos e fenómenos físicos que a ciência tem vindo, pouco a pouco, a desvendar. Mas constitui inegavelmente um progresso e um património da Humanidade o facto de as sociedades modernas terem conseguido organizar a sua vida colectiva respeitando estes (e outros) direitos individuais e, simultaneamente, estabelecer de motu próprio um código de regras de “moral social” aplicáveis a todos, independentemente das suas confissões, filosofias ou especificidades comunitárias. Isto, apesar da insuficiência e das hesitações patentes em muitas medidas legislativas (ou na sua aplicação), mas na expectativa da razoabilidade e perfectibilidade das soluções alcançadas. 
- Entretanto, a ideia de “uma moral sem obrigação nem sanção” pode ser um caminho interessante de percorrer no que toca à construção de uma ética individual, porque, em matéria de consciência, cada um é o último e o principal juiz dos seus actos; mas parece ser já duvidoso que o mesmo princípio deva constituir o fundamento principal do processo educativo, se se tem em vista o desabrochar de pessoas autónomas, felizes, responsáveis e socialmente bem integradas. E será de todo impraticável como “moral social”, numa sociedade complexa que, de forma incremental, procura proporcionar uma melhor realização de cada um dos seus membros, ao mesmo tempo que visa impedir uma regressão para a luta agónica de cada qual com o seu vizinho.   
JF / 2.Abr.2015
(Dedicado ao Contreiras, cuja paixão por um Estado justo é equivalente à minha por uma Sociedade emancipada.)

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