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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

E agora, políticos?

E o fim do Verão chegou com o desenrolar do inacreditável êxodo de fugitivos do Médio-Oriente e Norte de África, qual onda avassaladora, a ultrapassar todos os dispositivos e sinalizações dos estados europeus e só acudidos escassamente por voluntários de algumas organizações da sociedade civil, sob os apelos sem resposta de Ban Ki-Moon, Juncker, Guterres, do Papa Francisco, da Human Rights Watch ou da Amnistia Internacional.
O fim do Verão traz as habituais tempestades e esse conhecimento terá apressado os migrantes a aproveitarem a oportunidade da indecisão política da União Europeia para, com o seu fantástico e ininterrupto caudal (pedestre, como desde a antiguidade), forçarem o acolhimento nos territórios dos governos mais ricos e também mais inteligentes face às suas carências demográficas de longo prazo e ao nível nédio de qualificação escolar e profissional (dos refugiados sírios), como logo viram ministros alemães ou dirigentes do Banco Central Europeu: tentar transformar uma crise conjuntural numa oportunidade estrutural. Mas, nestes afloramentos, evita-se referir as dificuldades que até lá se levantarão quanto à integração sócio-cultural destas populações, os salários pressionados para a baixa que lhes serão propostos, as reacções xenófobas de alguns residentes e as possíveis rebeliões dos socorridos, que elementos radicais não deixarão de atiçar contra as discriminações impostas pelos países de acolhimento.
É certo que as autoridades governamentais da Hungria exibem constantemente reflexos autoritários e xenófobos muito condenáveis. Mas, no “jogo do empurra” que há meses se arrastava, alguém tinha que tomar medidas de contenção física e controlo das entradas, paralelamente ao socorro e auxílio a esta mole humana. Foi o que os húngaros fizeram de bom grado (e exagerando em rispidez) e que a Áustria e a Alemanha fizeram a contra-gosto, perante a manifesta incapacidade da Grécia, dos diferentes países balcânicos ou mesmo da Itália de gerir sozinhos esta situação.
Já dentro do Outono e com o Inverno à vista, virão as chuvas, os frios e as neves que produzirão verdadeiras catástrofes humanitárias se todas estas gentes não forem socorridas e orientadas para destinos protegidos e razoáveis.       
Estimava-se que a Síria tivesse 18 milhões de habitantes antes da situação de guerra (nem totalmente civil, nem completamente externa) em que mergulhou. Não é, em síntese demográfica, um país pequeno, ainda que a larga maioria do território seja desértico e a população se concentre em algumas dezenas de cidades. Hoje, segundo a agência especializada da ONU, estarão expatriados cerca de 4 milhões de pessoas no Líbano, na Jordânia e na Turquia, também no Iraque. As centenas de milhar que estão agora em marcha para a Europa são apenas uma pequena parcela e quase certamente a mais bem nutrida de meios económicos, estatuto e relacionamentos sociais (vista a forma como acedem e se movem já em solo europeu). Neste aspecto, nem são estes os mais necessitados por causa da guerra síria; e são aqueles que melhor poderão integrar-se, e os que à Europa egoisticamente mais convém receber. Pelo que é indispensável socorrer também a maioria das vítimas estacionadas na Ásia Menor. E não esquecer que, no afluxo que agora tenta penetrar na Europa, os sírios são acompanhados também por importantes correntes migratórias oriundas do Afeganistão (através do Irão ou da Arábia Saudita?), do Paquistão, talvez do Bangladesh e do Iémen, do Iraque e mesmo do Egipto, havendo provavelmente “teóricos da conspiração” que pensem tratar-se de movimentos incentivados e estimulados por poderes ocultos, na experimentação de uma nova estratégia para embaraçar o Ocidente. Mas tudo parece apontar que se trata, antes de mais, de um processo social de imitação, contágio e desespero que leva tantos milhares de pessoas a meterem em mochilas o que têm de mais valioso e lançarem-se nesta aventura, mediante o apoio de redes de parentesco e os gestos de solidariedade espontânea entre fugitivos (que facilmente também naturalmente degeneram em competição agónica face à escassez, por um lugar de viagem ou uma merenda), percebendo que a sua única força está no efeito-de-avalancha e no impacto que este produz nas opiniões públicas ocidentais, catapultado pelos mass media. 
Simultaneamente, prossegue no Mediterrâneo central o outro fluxo ascendente que vem dos confins da África e se lança ao mar a partir da Líbia buscando um refúgio mais seguro e prometedor nos países europeus, fluxo este controlado no essencial por traficantes locais e mais mesclado nas motivações dos migrantes, mas onde também existem numerosos casos de fuga a situações de violência e descontrolo na faixa que vai das Guinés até à Somália e, no sentido norte-sul, dos grandes desertos até aos altos planaltos da África central onde antagonismos tribais e senhores da guerra continuam a aterrorizar populações.  
Para estes diferentes problemas, a consciência humana exigiria que fosse encontrada com brevidade a forma mais justa e eficaz de devolver a paz, alimento, cuidados (médicos, etc.) e alguma ordem social a essas regiões. No limite, que as Nações Unidas declarassem formalmente como “Estados falhados” algumas delas e assumissem transitoriamente (?) a sua administração (como aconteceu no passado com Tânger, por exemplo, e alguém já propôs para Jerusalém), com os recursos financeiros, a capacidade legal e os poderes coercivos necessários, disponibilizados pela comunidade internacional. Esta é, porém (infelizmente, sabemo-lo bem), uma perspectiva de momento politicamente impossível de realizar. Pelo contrário, no grande espaço cultural islâmico multiplicam-se os conflitos armados intestinos; e os potenciais “aliados da paz” aqui, podem ser os piores inimigos ali, ou amanhã – para já não falar nos riscos do intervencionismo russo no teatro do Mediterrâneo oriental. Por isso, a crise humanitária vai manter-se e, pela sua dimensão e ineditismo, arrisca a combinar-se com outras crises (económicas e políticas) que estão latentes, aprofundando-as.
É possível porém que a União Europeia, com o seu “método da última hora”, consiga mitigar o actual drama dos refugiados, acolhendo umas boas centenas de milhar e rejeitando outros tantos por modos mais suaves do que a mera manu militari. Mas não nos iludamos: tal como perante o dilema de aceitar ou não a Turquia na UE, o que se perfila no horizonte para a Europa é um processo totalmente em aberto, onde tanto pode verificar-se uma interessante interpenetração de culturas e assimilação de hábitos de respeito-mútuo e vivência democrática por parte de comunidades a isso não acostumadas; como, pelo contrário, agudizarem-se os conflitos no quadro de uma latente “guerra religiosa” entre o mundo laico ocidental e um islamismo ameaçador. Neste aspecto, os movimentos extremistas de direita na Europa que se comportam como xenófobos devem ser combatidos politicamente mais por aquilo que são e não confessam – violentos e herdeiros ideológicos do nazi-fascismo – do que pelos alertas que lançam em relação ao perigo da “invasão islâmica”. Porque, se esta é uma expressão falsa e perigosa pelas emoções epidérmicas que provoca, também é mais que provável que haja cérebros, centros-de-decisão e espíritos fanáticos prontos a aproveitarem estes movimentos inorgânicos de massas para fazer progredir os seus desígnios de combate contra o Ocidente, e em especial os valores laicos, de liberdade e de igualdade básica entre seres humanos que aqui foram conquistados, e melhor ou pior preservados.
Mas o que é fundamental na resposta ocidental a essas ameaças é ser capaz de opor-se a tais intentos e, simultaneamente, encarar adequadamente a imensa maioria dos povos islamizados, sem negar na prática aqueles princípios constitutivos da Modernidade que proclamamos. Por esta razão, as esquerdas políticas e culturais seriam avisadas se conseguissem rever o seu discurso tradicional, aceitando que o caminho que estamos trilhando para sociedades cada vez mais urbanas, individualistas e cosmopolitas deva ser mais gradual e lento do que aquilo que está a ser – proporcionando melhores condições de integração e identidade sócio-cultural –, em vez do “tudo e já!” geralmente inscrito nos seus habitus.  
É verdade que os governos europeus têm neste processo da crise migratória (como no caso da Grécia e noutros) dado mostras de enorme dificuldade de entendimento e cooperação – e agora, no limite, de desumanidade. Mas só por oportunismo partidário ou facciosismo ideológico se lhes pode assacar a responsabilidade inteira desta tragédia. Neste caso, mais do que os seus interesses próprios de classe dirigente, são as opiniões públicas europeias e as perspectivas eleitorais que lhes impõem estes comportamentos (por respeito aos eleitores ou antevendo perdas substanciais e a ascensão de forças nacionalistas autoritárias ou violentas). Ou seja: está-se a pagar o necessário tributo às normas funcionais da democracia política nacional, quando este tipo de problemas é já claramente de natureza supra-nacional (como o são também os ambientais ou os da economia e da comunicação tecnológica actuais). Mas a quem ouço reclamar acções imediatas e decisivas neste plano, eu tendo a responder em tom irónico: “Só Deus…”. 
Depois da crise grega, a tragédia dos migrantes de África e da Ásia ajudou a revelar os enormes impasses em que se encontra a Europa política: só um salto-em-frente para uma federação mais constrangedora das soberanias nacionais actuais poderia porventura responder às necessidades de integração deste bloco face aos problemas políticos, económicos, sociais e de segurança com que está confrontado. Mas que eleitorados europeus estariam prontos para aceitar essa cedência? E que dirigentes das maiores potências aceitariam perder as suas posições em favor de uma “totalidade” que eles já não controlariam inteiramente (pelo menos durante um lapso de tempo previsível)? 
Não foram as “classes políticas” ocidentais que essencialmente criaram estas crises e estes impasses (até porque também elas herdaram “presentes envenenados” do passado histórico), outrossim as convulsões e estrangulamentos derivados do próprio processo global de mundialização que estamos vivendo. Mas nem por isso elas devem ser descartadas das responsabilidades que assumem por vontade e apetite próprios (e com os respectivos lucros, mesmo já não pensando na corrupção de alguns, talvez em número crescente). Os comportamentos abstencionistas em vastos eleitorados europeus são um sinal inequívoco de desafeição por estes seus representantes institucionais. Mas pior ainda é quando, por falta de cultura e memória histórica, buscam alternativas em partidos populistas, nacionalistas-extremistas e autoritários.  

As eleições de 20 de Setembro na Grécia deram uma confortável vantagem ao partido do senhor Tsipras, agora desembaraçado da sua ala mais esquerdista (o que lhe deve fazer pensar, como Estáline, que “quando o partido depura, fortalece-se!”). Apesar da enorme abstenção, difícil de medir por causa da emigração, a Grécia tem agora condições institucionais para enfrentar a austeridade dos próximos tempos. O governo logo formado (com uma rapidez em que os gregos são campeões) é de novo uma coligação estranha entre uma extrema-esquerda realista rendida à palavra do seu líder e um partido nacionalista que vela para manter os militares na ordem e alguma opinião de direita controlada. Tsipras afirmou-se nestes meses como um político hábil e corajoso, e terá dito no discurso de vitória que o programa era agora de “trabalho e luta”: o que augura que o seu estilo simultaneamente contundente, afável e populista (procurando sempre um “diálogo” directo com a rua) vai manter-se; e indica que a sua mais próxima batalha será a de impor internamente as primeiras medidas gravosas do “memorando” e lançar-se numa dura negociação externa sobre o “alívio da dívida”. Entretanto, obtém apoios populares enquanto conseguir manter em boa parte do eleitorado a ideia de que a sua governação constitui uma ruptura relativamente aos anteriores “partidos de poder”, a Nova Democracia e o Pasok, desacreditados e vistos geralmente (sobretudo este último) como agrupamentos marcados pela corrupção e o compadrio – coisa que ainda não aconteceu em Portugal. 

Uma semana depois, na Catalunha os eleitores deram uma composição parlamentar confortável aos independentistas na Generalitat mas frustraram as suas ambições de um resultado nas urnas superior a 50% que poderia ser brandido com prova da vontade separatista da região. Com o apoio parlamentar dos esquerdistas da CUT (Coligação Unitária Popular), o próximo governo regional da Catalunha vai provavelmente prosseguir a sua luta política contra Madrid mas esperará pelos resultados das eleições gerais de Dezembro para ver mais claro de que forma os seus eleitos poderão pesar na solução governativa que então se desenhar para o Estado Espanhol. O partido conservador dificilmente renovará a sua maioria; mas o PSOE pode talvez vir a entender-se com o Podemos! (esquerdistas renovadores) e sobretudo com o Ciudadanos (renovador centrista) para gerar um governo de coligação que proponha uma evolução do estatuto autonómico da Catalunha. Que estes independentistas aceitem tal plataforma como etapa transitória ou optem por “esticar a corda” desde já, depende, em grande parte, das novas aritméticas parlamentares e das lideranças – tal como o quorum e as condições políticas (nacionais e inter-regionais) para fazer uma revisão constitucional em direcção a um Estado Federal, que o PSOE defende e que o Ciudadanos e o Podemos! talvez viessem a aceitar. Em todo o caso, até agora (e como na Escócia), este grande processo de mobilização cidadã na Catalunha tem tido assinalável carácter cívico, democrático e completamente pacífico, como realçou o jornalista Ramón Font, o que é sempre de saudar, sobretudo em Espanha, e deve constituir uma referência para bascos e irlandeses.
       
Finalmente, em Portugal os resultados do escrutínio de 4 de Outubro só não foram uma surpresa porque este desenlace se desenhava desde há várias semanas. Mas quem, há um ano ou há seis meses atrás, ousaria imaginar isto? Com um governo de legislatura em que, sob a férula das instituições prestamistas internacionais, se reduziu o rendimento e o emprego dos portugueses, se acelerou fortemente a emigração (com muita gente qualificada), se comprimiram os auxílios sociais do Estado, se cumpriu um programa de privatização de empresas públicas, se enfrentaram choques com o Tribunal Constitucional, se falhou rotundamente a “reforma do Estado”, se obteve alguma entrada de capitais estrangeiros mas de forma e origens pouco convincentes (angolanos, chineses, “vistos dourados”, etc.), a retoma pelo consumo assumiu logo os defeitos de anteriormente e, apesar de tudo isto, a despesa pública foi sempre crescente, com os défices (embora em queda) a continuarem a alimentar a dívida e uma estrutura orçamental mantida à custa de elevados impostos… – poucos imaginariam, de facto, que o eleitorado não aproveitasse esta oportunidade para mudar os governantes de turno.
Apesar da ocorrência de dois momentos simbólicos de significativo protesto juvenil e popular contra esta degradação das condições de vida (Março de 2011 e Setembro de 2012, com governos de cor diferente), o povo português comportou-se resignadamente durante este período difícil. Certos grupos atingidos e mobilizáveis protestaram pontualmente e muitas vezes de forma veemente, mas o povo recusou-se a servir de “massa de manobra” para os diversos estados-maiores partidários, que de bom grado os conduziriam a algum desastre ou, às suas custas, procurariam chegar ao poder. Fechou-se no seu proverbial “individualismo” e endossou os restos de paroquialismo (conterrâneo, familiar ou amiguista) para atingir objectivos modestos mas próprios (como um posto de trabalho em país estrangeiro, um negócio na fronteira da legalidade ou mesmo a subscrição de um protesto pontual que o abrangesse). Porém, no íntimo do seu julgamento, terá desqualificado de maneira ainda mais drástica a opinião que já tinha da “corja de malandros que nos governam”.   
Como seria de esperar, os critérios jornalísticos da imprensa e os comentadores empurraram decididamente a opinião pública para os actores partidários já instalados, mas também é verdade que a emergência de forças realmente alternativas não passou, entre nós, de pequenos balbuciamentos entre as elites pós-modernas ou grupos oportunistas. Daí o não aparecimento de formações de alternativa política convincentes. 
A longa pré-campanha e a campanha eleitoral só tiveram de novidade uma louvável contenção dos porta-vozes das principais candidaturas à governação quanto às “promessas” – lembrados que estávamos, todos, da demagogia habitual dos partidos nestes períodos, e da sua negação, uma vez no poder. Mas este realismo deu margem a que, à esquerda do PS, se soltassem as amarras para acolher os mais impacientes, desesperados e raivosos da governação PSD-CDS.
As eleições são hoje um fenómeno mediático onde, sobre um soclo de voto ideológico e de escolha informada e ponderada por parte de uma certa fracção do eleitorado, actuam sobretudo as correntes emocionais e miméticas gizadas pelos grandes debates televisivos, pelas ideias e imagens fragmentadas que passam nas “redes sociais” e, em alguma medida, pela presença continuada de certos opinion makers na comunicação social. Os comícios, jantares e arruadas apenas servem para marcar presença nos telejornais. 
No período legal da campanha de rua, mais uma vez se repetiram os desconchavos verbais, com o ingrediente suplementar de algumas intervenções agitadas dos “espoliados do BES”. Como reconhece Paquete de Oliveira, provedor do leitor de um jornal de referência, estas práticas, «com uma propaganda feita de slogans, de promessas fátuas, explorando ‘apegos sentimentais e emocionais’, só ampliam a indecisão e, sobretudo, a descrença e o afastamento crescente dos cidadãos» (Público, 27.Set.2015).
Mas foi neste período final que as tendências das sondagens acabaram por inverter as gerais expectativas, com o tom pessoal, cordato e responsável do discurso de Passos Coelho a contrastar vivamente com a excitação e gesticulação absurda de um António Costa, que já de ordinário se exprime mal e julgou assim conquistar a populaça. Deste modo, pareceu esquecer (e ocultava) aquele que é o seu melhor capital pessoal: o conhecido pragmatismo e capacidade negociadora.
No dia 4, mais uma vez a maioria dos cidadãos manifestou-se pela sua filiação no universo dos descrentes nas alternativas do actual espectro partidário (os abstencionistas, brancos e nulos) com um score global de 45% em relação ao universo oficial de eleitores. Porém, dada a pouca confiança deste último número e tendo em conta a emigração recente, é provável que uma boa parte dos portugueses tenha querido mostrar a sua vontade de influir no destino do país. O PS logrou 32% dos votos “validamente expressos” e a coligação PSD-CDS atingiu os 39%, beneficiando provavelmente da inteligência e firmeza política de Passos Coelho, que “meteu no bolso” Paulo Portas a partir de Agosto de 2013 e cujo estilo de homem público agrada a muitos eleitores. Quanto aos “pequenos partidos”, praticamente todos à esquerda, conseguiram em conjunto 25% dos votos em urna, o que permitiria várias soluções de governação, não fosse a petrificação ideológica em que vivem os dirigentes e militantes do Bloco de Esquerda (com um resultado surpreendente) e do Partido Comunista, e a inutilidade governativa de muitos outros. No entanto, como porta-vozes independentes e de diversas causas, é pena que, por exemplo, o Livre e o partido de Marinho e Pinto tenham sido “arrasados” eleitoralmente, com a surpresa adicional da eleição de um deputado do partido PAN, de cuja direcção o filósofo Paulo Borges (promotor da vinda do Dalai Lama a Portugal) disse há poucos meses “cobras e lagartos”, no momento de ruptura com o ex-“Partido dos Animais” de que ele fora um dos principais fundadores.     
Já me enganei redondamente na crise política do Verão de 2013 quanto ao maquiavelismo político de Cavaco Silva e arrisco agora idêntico falhanço, mas não quero deixar de me pronunciar num dia 5 de Outubro que o residente de Belém resolveu este ano desprezar.
Nas condições presentes, o Presidente da República – que pode vir a deixar Belém sob uma azoada de “lenços brancos” – deverá encarregar o líder da formação maioritária em S. Bento de formar um governo que não tem condições políticas para cumprir a próxima legislatura. Ou cairia de imediato (com uma “gestão corrente” prolongada sem orçamento aprovado para 2016, coisa que o PS não deve deixar que aconteça), ou vai “navegar à vista”, dependente da “margem de compromisso” com o maior-partido-da-oposição (como já aconteceu em tempos de pantanosa memória) ou teremos novas eleições dentro de oito meses ou um pouco mais: tudo perspectivas pouco animadoras para a sanidade da vida social e económica do país, mas sobretudo eficazes para afastar cada vez mais os portugueses destes seus representantes institucionais, que há 40 anos monopolizam o campo político.
O decepcionante resultado eleitoral agora obtido pelo Partido Socialista mostra o estado adiantado de crise e decomposição da esquerda portuguesa, que já esqueceu as referências do republicanismo e do anti-fascismo, e se perdeu nas aventuras do pós-modernismo e da financeirização da economia mundial. Apesar de, notoriamente, possuir melhores quadros técnicos em quase todas as áreas, e da estreiteza cultural de que dão mostras as elites de centro-direita, foi este último sector político que entre nós demonstrou maior capacidade de adesão popular num momento decisivo como este. Convenhamos também que, com esta coligação em condições de governar (o que não é agora o caso), seriam alterações ainda mais profundas do que as já experimentadas aquelas que aguardariam a sociedade e a economia portuguesa na próxima década, que todavia ficariam incompletas ou mesmo bloqueadas se o Partido Socialista não se dispusesse a entender-se com ela numa reforma constitucional e de certas leis estruturantes. E, no espaço mundial, se há alguma revolução em curso, ela é a do declínio do Estado-nação e da emergência de forças económicas e espirituais que cruzam despreocupadamente as fronteiras tradicionais.
“Há mais vida para além do orçamento!”, proclamou um dia Jorge Sampaio, talvez com mais razão do que aquela que então o movia. De facto, se o sistema político está encravado desde há anos, sobretudo (mas não exclusivamente) devido aos três grandes partidos de governo, seria importante que surgissem propostas de reforma profunda do nosso funcionamento democrático. E aqui o panorama é: “zero!”. Contudo, também é verdade que “as ideias” ficam impotentes quando “os números” (que traduzem “factos”) se impõem inexoravelmente, seja em termos económicos ou demográficos. O problema é que esta objectividade só se torna evidente a longo prazo (ou à distância histórica) e que entretanto os seus “tradutores” também merecem pouca confiança, porque estão sujeitos como quaisquer outros às simpatias, antipatias e aliciamentos do poder, e não somente aos erros, como seria lícito.
O país vai provavelmente continuar a ter um Estado deficiente e gastador, com uma governação de curto prazo, sem capacidade de afirmação própria nem o entendimento de uma estratégia consistente para melhor se situar no difícil contexto internacional.
JF / 5.Out.2015

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