Contribuidores

domingo, 18 de janeiro de 2015

Anotações críticas sobre a Sociologia que eu conheci (I)

Breve esboço antecedente ao que poderia ter sido a escrita de um ensaio sociológico sobre metodologia, intermediações inevitáveis nesta elaboração científica, a tentação da formulação de “leis”, a sociologia crítica e as suas relações ao poder, e ainda outros assuntos que foram surgindo a talhe de foice.
A este, seguir-se-á um outro texto, tratando de coisas análogas.

Análise e contra-análise
Deixem-me ser aqui excessivo e provocatório e começar por afirmar que, no processo de demonstração de muita pesquisa sociológica publicada, “diz-se o que se quer dizer”. Os mesmos dados podem servir para dizer isto e o seu oposto! Falo especialmente das análises qualitativas, em que sobretudo se procede por acumulação de indícios que, no final, o investigador considera serem provas explicativas do fenómeno que procurou estudar. Nos métodos quantitativos, em especial quando se usa o teste de hipóteses formuladas por via de algoritmos ou regularidades aritméticas, tais erros parecem menos possíveis mas, ainda assim, é preciso proceder cuidadosamente ao desenho do modelo de análise, à escolha dos indicadores, à codificação de respostas em inquéritos, etc., para que, sob a aparência do rigor matemático, se não escondam deturpações que viciem os resultados finais. A actual catadupa de informação estatística que é servida diariamente pela comunicação social a um público indiferenciado é bem ilustrativa desta ilusão! E note-se que não estamos a suspeitar de intenções menos éticas por parte dos cientistas sociais, mas apenas a alertar para os possíveis erros e defeitos de uma investigação que parece às vezes demasiado “segura de si”.
Depois de umas décadas de expansão e florescimento, a sociologia dá sinais de alguma perda de credibilidade, com paradigmas envelhecidos e desafiados por outras ciências concorrentes ou insistindo na exploração de temas talvez excessivamente afunilados ou sectoriais. E, no entanto, perante tanta invasão do espaço público por especialistas armados de conhecimentos da economia, da psicologia, da ciência política ou das relações internacionais, sente-se amargamente a falta dos contributos que a sociologia pode trazer para o melhor conhecimento das nossas sociedades e mesmo para um maior controlo social sobre o seu próprio devir.
Começando então pelas questões metodológicas, há um procedimento que há muito me seduz e que poderia constranger o processo de pesquisa a um maior rigor: refiro-me ao modelo da análise e contra-análise.
Tratar-se-ia, para o investigador, após ter concluído a sua análise do objecto estudado, com base nos mesmo dados, procurar demostrar logicamente o inverso das conclusões alcançadas, ou, pelo menos, algo de bem diferente da tese defendida. Ou então, se se busca verificar uma hipótese, procurar com o mesmo esforço, rigor e lógica, chegar à sua não-verificação; ou verificá-la, se o resultado inicial tiver sido o inverso.
Só se esta contra-análise (ou contra-prova) fosse positiva (ou seja, se o inverso ou o diverso não fosse, de facto, também demonstrável; ou se a hipótese não fosse, ao mesmo tempo, verificável e não-verificável), é que poderíamos considerar validadas as conclusões formuladas.
Sei bem que estou a falar em termos abstractos e que existem muitos procedimentos analítico-descritivos da sociologia que, sendo utilíssimos e indispensáveis, não se prestam a tais exercícios formais. Mas estou a pensar principalmente nos projectos de investigação, incluindo aqueles que servem para sustentar provas académicas de doutoramento onde, verdade seja, cada vez mais se procura apenas avaliar a capacidade e competências do candidato para as profissões da Ciência e já não se espera que dali saia obrigatoriamente um (mesmo pequeno) avanço do conhecimento científico.
Mas tenho presente a volumosa bibliografia acumulada na minha área de especialização da sociologia do trabalho que eu avaliei como inutilizável para o ensino após a queda do bloco socialista do Leste… tais eram as insidiosas mas agora indisfarçáveis infiltrações ideológicas derivadas da luta política entre capitalismo e socialismo que haviam penetrado neste edifício da Ciência, suposto inabalável e acima de tais querelas.  
Assim, uma maior exigência metodológica quanto à validação do conhecimento científico em sociologia – independentemente de um mais frequente uso dos seus instrumentos de pesquisa e análise para responder concretamente a problemas socialmente relevantes – traduzir-se-ia possivelmente numa melhor contribuição desta disciplina para o progresso da humanidade. E talvez isso ajudasse a aligeirar um pouco as nossas estantes...

A importância das linguagens
Diferentemente das ciências exactas, nas ciências sociais e humanas o pensamento só vai fluindo e progredindo, através de múltiplas conexões lógicas ou exploratórias, de acordo com a maneira como somos capazes de o formular (isto é, de traduzir em frases construídas com sentido gramatical). No caso das ciências exactas, essa dependência também existe, mas é em relação à formulação lógico-matemática (isto é, através de algoritmos). Isto mostra como nas “humanidades”, para além de outras contingências ou vínculos estruturais, o progresso do conhecimento está também dependente das “disponibilidades linguísticas”, além certamente das competências do cientista em as dominar. Formulamos “ideias científicas” através de conceitos e afirmações (statments, proposições, dúvidas, hipóteses, questões), que se encontram enredados num universo de significações e regras gramaticais que as contextualizam. Por outro lado e simultaneamente, necessitamos absolutamente de tais universos e também de instrumentos “tradutores” que nos permitam: a) primo: verter observações e discursos “triviais” para o nosso quadro analítico; b) secundo: que tais “ideias” sejam difundidas e compreendidas pelo senso e a cultura comuns. Temos pois sempre um problema de tradução (além de outros) no vai-vem inevitável entre as formulações científicas e a linguagem comum.
Para além da percepção comum do “tradutore, traditore”, tinha planeado ler a referenciada obra de Walter Benjamin sobre tradução, coisa que nunca pude concretizar. No entanto, mesmo sendo um leigo na matéria, percebo como todos as dificuldades e armadilhas da tradução (porque o texto está ligado à língua e esta ao pensamento) e tive oportunidade de enfrentar este problema em variadíssimos casos de indicação bibliográfica de autores estrangeiros da sociologia mal vertidos para português, ou para os quais eu procurava uma forma de elucidação dos meus alunos que fosse a mais correcta possível. Ocorrem-me no momento conceitos como o de “discreción”, em castelhano (ou “discretion”, em inglês), que nunca consegui resolver de forma inteiramente satisfatória. Ou os termos “commitment” (inglês) e “compromis” (francês), com diversos sentidos em português, vizinhos mas suficientemente diferenciados: - Envolvimento ? - Compromisso ?  - Empenho, teria um sentido mais forte (talvez já próximo do “compromisso de honra”, ou seja, de um juramento); - Diligência, envolvimento, implicar-se em algo? - Comprometido, comprometimento, com sentido negativo, moral ou jurídico? - Mas “solução de compromisso” já remete para outras direcções, em que solução significa soluço, interrupção, mas também resultado; e compromisso vale aqui como agenciamento de interesses ou posições diferentes, por exemplo numa negociação, em que se cede parcialmente para se chegar a um acordo final; - Etc.
De facto, a sociologia usa linguagens marcadas pelo hermetismo e polissemia, ao mesmo tempo que emprega palavras e expressões do idioma corrente (ou literário), de que são exemplos imediatamente acessíveis à generalidade das pessoas com uma cultura básica ou média, os seguintes (entre muitos outros): classe; poder; família; socialização; diferenciação; etc. Mais raramente a sociologia emprega termos eruditos e/ou herméticos, como “seripendidade” (seripendity), status, “privação relativa” ou outros.
Admito que em outras ciências sociais possa ocorrer o mesmo fenómeno, mas, cautelosamente, não o afirmo, pelo que me refiro aqui apenas à minha disciplina científica.
No primeiro caso, a linguagem dos sociólogos parece muito mais acessível mas, na verdade, entra num jogo de subtilezas semânticas de base polissémica. A decifração do sentido preciso em que o sociólogo usa então o termo comum decorre do contexto discursivo e dos leitores ou dos ouvintes/falantes envolvidos na discussão. Ou seja: esse sentido preciso revela-se por entendimentos subtis a que só os “iniciados” acedem discretamente (de um modo equivalente aos toques ou imperceptíveis sinais de reconhecimento que vigoravam entre os membros das sociedades secretas).
O segundo caso, de mais escassa utilização pelos sociólogos, traduz-se, como vimos, pela adopção e desenvolvimento de uma terminologia própria e especializada (como a usada pelos médicos, pelos marítimos ou ainda nas designações de espécies botânicas em latim). Esta alternativa também afasta os “profanos” mas, diferentemente da anterior, anuncia as fronteiras do “território sagrado”, unicamente acessível aos “ungidos”.
Ao constatarmos esta prática social dos sociólogos na sua produção científica escrita e falada, podemos então pensar, em termos interpretativos, que os sociólogos tendem a adoptar uma postura estratégica inteligente e elaborada através da qual encenam, à primeira vista, uma intenção de abertura, diálogo e dissolução no meio das pessoas comuns ao utilizarem uma linguagem entendível e com (algum) sentido para todos. Assim, recolherão os benefícios de parecerem próximos ou iguais ao indivíduo vulgar, pois assim o percebem esses anónimos.
Porém, a realidade é mais complexa e menos altruísta. Com efeito, a pessoa comum não entenderá no discurso do sociólogo senão uma parte, um sentido restrito e parcial do conceito dominado, na sua complexa globalidade, pelo cientista. Este sabe-o e disso tirará algum capital de superioridade. E se um exemplar do comum ousa intervir, perguntando ou contestando a afirmação do sociólogo, logo se lhe revelará como profano, desarmado do saber e da posse dos códigos da comunicação científica.
Assim, um despique (e, de certa forma, um embuste) se perfila na relação entre o sociólogo e o cidadão comum, por via deste uso duplo da linguagem científica. Os sociólogos, como especialistas científicos da sociedade, tiram todo o proveito de se fazerem mostrar próximos e iguais às pessoas comuns, insinuando-se e fazendo-se passar por tais, mas, internamente, preservam o seu espaço próprio e reconhecem-se como diferentes e bafejados pela distinção de um acesso exclusivo a um grau de compreensão superior.
Alguns dos seus comportamentos prosaicos quotidianos vão no mesmo sentido. É muitíssimo mais fácil encontrar um sociólogo vestido de forma (espontânea ou estudadamente) descontraída ou mesmo algo negligente – sem gravata, de blue jeans, despenteado, etc. – do que da forma de vestir tradicional da classe média ou trajando à dandy.  
Dentro do próprio território sagrado, um processo semelhante – agora de maior ou menor domínio dos cambiantes do conceito – tende a diferenciar e a hierarquizar os vários estratos de sociólogos, em termos de acesso, posse e conservação do conhecimento, estratos que muitas vezes não correspondem às hierarquias formais das carreiras académicas ou à idade e experiência dos sujeitos mas, principalmente, à sua aptidão em usar adequadamente os recursos de conhecimento, relacionamento e comunicação mais eficazes neste específico meio social.

Perguntar, responder
As técnicas de inquirição a pessoas comuns escolhidas aleatoriamente são muito utilizadas em sociologia e, cada vez mais, por outros agentes, sobretudo com fins comerciais.
Nesta última circunstância, muitas vezes feita telefonicamente ou por via da Internet, é frequentíssimo as perguntas – e, sendo caso disso, as alternativas de resposta – serem muito mal formuladas, dando lugar à multiplicação de ambiguidades que acabam inevitavelmente por enfraquecer a qualidade dos resultados finais apurados no inquérito. Os sociólogos, psicólogos sociais e politólogos aprendem a evitar tais escolhos mas, mesmo assim, não é raro encontrar em trabalhos científicos deficiências de formulação, em parte causadas por mau manejo da língua, em parte por incúria do investigador.
Uma pergunta “de opinião” pode ser interpretada diferentemente se, na redacção da mesma ou nas “instruções” anexas, não se esclarece devidamente o respondente sobre aquilo que se pretende. Por exemplo: ao perguntar simplesmente “O grau de importância que atribui a…”, o respondente mais consciencioso fica sem saber se se pretende que responda “Como eu acho que é, actualmente…” (princípio da realidade) ou “Como eu acho que devia ser” (normatividade pessoal ou ideológica). Ou, se se inquire qual “O grau de preocupação que lhe suscita... (um determinado problema)”, convém esclarecer que se pretende obter a opinião do respondente como resultado de uma análise, minimamente estruturada (isto é, resultado de uma hierarquização conceptual) ou, diferentemente, como preocupação emocional (afectiva, angustiante, ligada à vivência do problema).
Nunca fui especialista das matérias de ensino dos métodos e técnicas de investigação e análise sociológica. Porém, na oportunidade de participar em inquéritos internacionais de grande exigência metodológica, pude avaliar melhor a importâncias destas questões, que procurei aperfeiçoar em diversos projectos de investigação empírica de que fui responsável. E tive ainda o desplante de poder conceber uma operacionalização técnica inovadora – a choice box (ver revista Sociologia – Problemas e Práticas, nº 48, 2005) –, utilizável num questionário de administração presencial, em situação de entrevista, em que o método de resposta a um tipo específico de pergunta era o da escolha múltipla distributiva, que pode ser definido como aquele em que o sujeito “arbitra a distribuição ou incidência relativa de um atributo, dentro de um campo limitado de alternativas” ou, em termos matemáticos, uma “escolha distributiva ou percentual”. Isto originou um pedido de submissão de patente nacional, financeiramente sustentado durante alguns anos, mas que infelizmente não pôde ser levado ao seu termo por desatenção ou desinteresse do centro de investigação a quem eu oferecera a “invenção”. Lamento hoje não ter dedicado mais atenção a este assunto e, sobretudo, não ter solicitado desde logo a patente europeia (bastante mais cara). Tenho a impressão de que, se reconhecida, teria sido uma première absoluta em sociologia, que talvez tivesse despertado a emulação de outros investigadores mais qualificados do que eu, lançando-os para maiores cometimentos neste domínio.

Avaliar e medir: o caso das classificações avaliativas académicas   
Alguma reflexão prosseguida ao longo de anos sobre as “notas” obtidas pelos alunos da minha área científica levou-me a questionar o sistema classificativo “de zero a vinte” em vigor nas universidades portuguesas e a levar esta questão a um debate de natureza pedagógica com os meus colegas, organizado em tempo, certamente mais de uma década, pelo ISCTE.    
Recordo-me de ter recorrido a simples análises de estatística descritiva sobre os resultados escolares dos alunos, a confrontos e discussões com colegas de universidades estrangeiras, sobretudo a partir do momento que o programa de mobilidade estudantil Erasmus se tornou mais recorrente, e também à experiência que ocorreu em Portugal nos anos agitados a seguir a 1974, em que a classificação numérica de 0-20 foi substituída por uma escala qualitativa positiva de “A, B, C”. Tanto aqui como no lançamento de classificações obtidas no estrangeiro, colocou-se logo o problema das respectivas equivalências. Lembro-me, por exemplo, que na Bélgica acrescentavam alguns valores às classificações trazidas de Inglaterra e, em contrapartida, diminuíam as obtidas em Itália…
Defendi então que melhor qualidade da escala 0-20 era a sua “universalidade” (vide até as então marcantes “notas do professor Marcelo”), por não haver qualquer contestação significativa à sua aplicação, num meio social onde a crítica é incentivada e a contestação estudantil está activa a propósito de muita coisa, justificada ou não. Tinha também a vantagem de ser facilmente convertível em percentagem, e vice-versa, pois a estrutura lógica é a mesma. Mas não haveria défice de discussão e reflexão? Não haveria mesmo atitudes “estratégicas” dos actores para manter o statu quo, pelas vantagens pessoais que daí retirariam? Nas disciplinas optativas, os professores tinham evidente interesse em, por via das classificações elevadas, atrair os alunos, e estes em as angariarem, com vista à melhor média final do curso. E tenho ideia de ter exibido os resultados da minha análise estatística apontando a “arbitrariedade” das classificações negativas (por força da sua escassez nas nossas disciplinas), e a dificuldade de atribuir classificações positivas em mérito absoluto numa escala de 21 graus (10 a 20, inclusive) em matérias de ciências sociais (através de apresentações orais, ensaios críticas, notas de leitura, etc.), acabando por essas classificações decorrerem essencialmente de uma avaliação em mérito relativo, onde se podia sustentar que, embora ambos “Bons”, a prova de Fulano era melhor do que a de Beltrano.   
Problemas de índole semelhante mas concretizados de modo diferente se colocam frequentemente também nas classificações qualitativas a atribuir em provas de doutoramento ou em exercícios de avaliação do desempenho profissional de pessoas ou de instituições.
Recordo-me, finalmente, que a orientação para a qual me inclinava então, decorrente dessas análises e oportunidades de reflexão, ia no sentido de uma escala positivo-negativo não-simétrica, com 2 graus na parte negativa (ou insuficiente) e 3 ou 4 na parte positiva – no fundo, próxima daquela em uso há largos anos no ensino básico português. E que a minha maior frustração decorreu da percepção com que então fiquei de que estas questões de avaliação classificativa são encontravam a mínima sensibilidade e interesse em serem discutidas na nossa universidade (pois a Ciência estava sempre à frente de tudo!…). Mas também retive a ideia, que me foi transmitida por alguém conhecedor do que se passa em grandes países, de que qualquer modelo de avaliação de desempenho tem necessariamente, de tanto em tanto tempo, de alterar os seus critérios e modos de intervir, para assim se furtar aos “curtos-circuitos” e “comportamentos estratégicos” que os avaliados põem sempre em acção para evitar sofrer os efeitos nefastos daí decorrentes. 

Pensar em “A-4”; raciocinar em “Windows”
Esta era uma especulação que nunca cheguei ou fui capaz de desenvolver: era um exercício especulativo sobre as “formatações” físicas em que somos obrigados a expor a complexidade de raciocínios nas análises em ciências sociais. Os psicólogos, por exemplo, forjaram uma sistemática de exposição do texto científico muito económica e formalizada em que, geralmente, procuram explicitar um problema de contornos bem delimitados, referenciar a teoria que guia a pesquisa, indicar os procedimentos metodológicos usados, apresentar e discutir os resultados obtidos. Em sociologia, a variedade de métodos expositivos é muitíssimo maior. Mas todos os investigadores menos experimentados começam por experimentar a “angústia da folha em branco”, na hesitação de como começar o texto. Mas sabem perfeitamente que este tem de “caber” naquele formato preconcebido.
O “A-4” é um pouco o símbolo da escrita, do artigo, do trabalho académico, da tese. É o ponto de conjunção de um pensamento sistemático e teórico, com o texto, o discurso da língua e das suas exigências gramaticais e semânticas. O texto torna mais rigoroso o pensamento, porque o fixa; mas mata o discurso, porque lhe tira a expressividade, a emoção, a convicção (que existe na pregação, na defesa jurídica, no apelo do líder, na exaltação do conferencista, na peroração do filósofo). Experimente o sociólogo professor universitário gravar discretamente algum dos seus cursos – como eu já fiz com a intenção baldada de aproveitar esse discurso para escrever depois um “manual” – e veja como pouco dali se aparenta com um texto preparado para publicação, não obstante todo o empenho e sabedoria postos da preparação dessas aulas!
Por seu lado, o “Windows” é o símbolo do actual trabalho e uso da informática em ciências sociais: manipula o texto com muito maior facilidade, mas sobretudo integra a palavra com o número e com gráfico; integra (coisas dispersas), normaliza (a revisão literária), sintetiza, pesquisa (as palavras-chave), intercomunica, etc. O Windows não é apenas a máquina; é uma parte já de saber codificado e aplicado. O resultado já não é puramente individual, singular. É uma técnica hoje indispensável, utilíssima e muito mais produtiva do que todas as anteriores formas de escrita (caligráfica, dactilógrafa, com revisões, etc.), mas é também uma nova maneira de organizar e transmitir o pensamento a terceiros.
Mas, por outro lado, ao oferecer ao cibernauta um conjunto de leques de escolhas entre termos alternativos não hierarquizados, a Internet “achata” a hierarquização da importância dos temas, as suas relações lógicas e sequencialmente ordenadas. Todos os assuntos se equivalem em ordem de importância: tudo são “palavras-chave” para a pesquisa. O conhecimento (a que acede o cibernauta e, futuramente, a sua educação intelectual) passa tendencialmente a ser “horizontal”, “paralelo”, misturando indiferentemente conceitos de elevada complexidade e formulação com informações triviais da prática quotidiana, turística ou desportiva. O que se ganha de um lado parece perder-se de outra banda.

Atitudes e racionalidade

Segundo Stoetzel, as atitudes sociais são disposições relativamente estáveis dos sujeitos, subjacentes a um conjunto de comportamentos (actos objectivos, observáveis, registáveis) e de opiniões por eles emitidas, conferindo um certo grau de coerência ao conjunto e sendo, por isso, um instrumento útil para construir tipologias que nos ajudem a entender as acções humanas, individuais e colectivas.
Quando se fala de atitudes – que, insistimos, não são leituras imediatas da realidade – é frequente usarem-se os adjectivos de “optimistas” ou “pessimistas”, os quais representariam desde logo uma certa disposição atitudinal dos sujeitos face a um determinado problema ou campo de opções. Procuremos então confrontar estas supostas disposições em contraposição com um aferimento quanto à sua racionalidade ou não-racionalidade.
Nas atitudes “optimistas” a racionalidade residirá em reconhecer a insuficiência, limitações e distorções da informação de que dispomos e do nosso conhecimento; e hipotizar que, no futuro, podem surgir outros e novos dados que permitam saídas para situações aparentemente bloqueadas. Temos pois, aqui, uma racionalidade objectiva, fundada sobre hipóteses plausíveis ou condicionada por elementos presentes desde o início. Distintamente, a não-racionalidade poderá residir em apostar (à sorte) que algo de novo e de melhor virá desbloquear uma situação aferrolhada (atitude temperamental); ou ter a crença de que a humanidade caminha para melhor, apesar dos desvios, ou que o Homem é bom, apesar dos disparates que faz, etc. (atitude cultural).
Pelo seu lado, nas atitudes “pessimistas” a racionalidade residirá em: reconhecendo a insuficiência, limitações e distorções da informação de que dispomos e do nosso conhecimento, concluir que, numa dada situação, as saídas podem ser negativas, devendo então prepararmo-nos para esse pior cenário (de novo, uma racionalidade objectiva, fundada sobre hipóteses); ou então, admitir que tais saídas possam, apesar de tudo, ser menos negativas do que as que entrevemos (ou até, surpreendentemente, positivas), considerando nesse caso que tal surpresa é um ganho adicional em relação a expectativas mais modestas (ainda uma racionalidade positiva, mas hipotética, de segundo grau). Por seu lado, nesta mesma atitude “pessimista”, a não-racionalidade residirá em: ter a inclinação para tapar as saídas possíveis, ainda que improváveis (atitude temperamental); ou ter a convicção de que a humanidade caminha para pior, ou que o Homem é mau por natureza, etc. (atitude cultural).

Temas dispersos de uma epistemologia simples:
A teoria dos dominós é muitas vezes referida nas relações internacionais. Parece que adquiriu esse estatuto depois do uso político que dela fez o Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger na primeira metade da década de 70 do século passado. A sucessão de quedas dos regimes políticos nacionais que vigoravam no sudoeste asiático orientando-os para o bloco socialista, a que se seguiu a vaga de democratizações no sul da Europa, terão configurado aos seus olhos a ideia de insustentabilidade de um governo quando outros homólogos implodem ou são derrubados em curto espaço de tempo. Esta noção foi confirmada, anos depois, pela erradicação das ditaduras na América Latina e, sobretudo, em 1989-91, pelo esboroamento e auto-destruição dos regimes socialistas do leste europeu. É sabido que a “ordem internacional” tem uma natureza específica que não é comparável a qualquer formação social constrangida pelos limites jurídicos e geográficos dos poderes de Estado. Contudo, à vista de fenómenos de enfraquecimento da coesão social e de perda de reconhecimento das instituições tradicionais (políticas, económicas, judiciais, etc.) como aqueles que parecem entrever-se no actual clima de crise económica, não deixa de ser pertinente perguntar se a referida “teoria dos dominós” (ou algo de parecido) pode ter aqui algum tipo de aplicação. Ao observar as pulsões regionais e nacionalistas no interior de certos estados europeus, ocorre-me pensar na história de um país tão importante e progressivo como a França na década de 1930 e em seguida na década de 50, e na maneira como então se finaram as instituições da III e depois da IV República.  
Dois factores sempre esquecidos. Em praticamente todas as análises históricas (mas de acontecimentos e situações que podem ter ocorrido há apenas alguns anos atrás), sejam elas de base documental ou por rememoração de algum observador então presente, há dois factores “de contexto” que são quase sempre esquecidos, em favor das dinâmicas em jogo, da intencionalidade dos agentes, etc. São: as condições meteorológicas e o dia da semana. Da nossa própria experiência de vida, sabemos bem como a chuva, o calor, o frio, o vento ou a tempestade condicionam externamente muitos dos planos que poderiam estar previstos ou o empenhamento ou disponibilidade das pessoas para fazerem isto ou aquilo. Ora, se isto é assim, parece óbvio que, relativamente a qualquer evento passado, o investigador deva apurar que condições meteorológicas vigoravam no dia e no local em que ocorreram os factos em análise. Algo de semelhante deve ser feito em relação ao dia da semana em que um determinado acontecimento tem lugar, pois sabemos que, no mundo moderno, o ciclo semanal de actividade das populações organiza de forma muito impositiva as práticas e as disposições anímicas dos sujeitos, quer se trate da vida económica e laboral, das instituições escolares, das actividades de cultura e recreio ou das liturgias religiosas. Eis uma recomendação que, em primeira mão, deveria ser dirigida aos historiadores mas que se pode aplicar igualmente aos sociólogos, aos psicólogos e a outros cientistas sociais.
Economias de escala/Escalas da sociologia? As economias de escala são um dos núcleos de conhecimento fundamentais da economia. Em sociologia, o conceito tem menor aplicação, sobretudo porque, tendo uma lógica essencialmente quantitativa e por isso muito adequada à análise algébrica, se casa mal com diferenciações qualitativas que os cientistas julgam fundamentais para o estudo da vida social, como sejam o “a família”, o “pequeno grupo”, a “formação social”, a “sociedade global”, etc. Apesar disso, talvez não fosse esdrúxulo pesquisar mais aprofundadamente certos patamares quantitativos para apurar o seu impacto sobre as relações sociais, internas e externas, dessas unidades. Por exemplo, nas empresas, a noção de “micro”, “pequenas”, “médias” e “grandes” tem sido objecto de uma utilização grosseira, por economistas ou estatísticos, por ausência de uma base de reflexão mais fundamentada oriunda da sociologia ou da psicologia social. E – outro exemplo – a determinação aritmética da representação para constituir um parlamento político, por referência à população mas também à eficácia do seu funcionamento, deveria ser reexaminada também sob esses prismas de aproximação científica.
Pós-grupos. De que falam e como se comportam as pessoas que em tempos pertenceram a um mesmo grupo de inter-conhecimento e depois dele se desligaram (ou o mesmo se dissolveu), quando, mais tarde, ocasionalmente se encontram ou relembram essa experiência passada? Que traços individuais e que laços permanecem ao longo da vida dos participantes, deste envolvimento passado: apenas recordações nostálgicas? compadrios e entreajudas oportunamente reactivadas? ressentimentos definitivos? Que efeito tem aqui a “variável tempo” ou o grau de afastamento físico entre os antigos companheiros? Trata-se, com efeito, de um fenómeno muito corrente nas nossas sociedades, sobretudo ligado a práticas de convívio geracional em ambiente escolar, de “grupo de bairro” (ou de aldeia), de grupo de amigos (aproximados pela idade, o género ou um isolamento geográfico), de camaradagem profissional ou de pertença a organizações políticas ou confessionais. Porém, diferentemente das relações familiares (que, evidentemente, têm todo um outro grau de integração e afectividades), não temos visto esta questão ser estudada pelos sociólogos.
Provérbios populares e regularidades sociológicas. É sabido que a sabedoria popular está cheia de convicções cientificamente erradas, mas também é prudente encarar algumas delas – sob a forma de provérbios ou ditos de tradição, do tipo: “não sirvas a quem serviu, nem peças a quem pediu…” – como sendo o resultado consolidado e sedimentado pela sua verificação prática ao longo de gerações de uma espécie de “sociologia espontânea”, cujas formulações poderiam ser confirmadas por critérios de aferição científica ou servir de pista ou pergunta de partida para uma investigação conduzido com bom rigor metodológico.
Três gerações bastam (mas são necessárias) para mudanças sociais profundas. Em estudos sócio-históricos, tenho-me debruçado com algum detalhe sobre a moderna colonização de África pelos europeus. E salta-me mais à evidência que, por referência aos actuais viventes urbanos desses países, os seus avós estavam, na grande maioria dos casos, ainda imersos nas redes, práticas e crenças típicas das pequenas sociedades tradicionais, cultivando a machamba, pastoreando a cabra ou batendo o prego, e observando os rituais ditados pelos grandes. Os pais passaram talvez já pelos bancos de uma escola rudimentar e obtiveram um trabalho a salário, mesmo se incerto. Mas os de hoje podem ser empregados, vendedores ou funcionários; e, sobretudo, estão falando e vivendo ao ritmo do mundo. Nem mais, nem menos.

Uma sociologia de proximidade
Há muitas maneiras de fazer sociologia. Nada, em princípio, impede um sociólogo português de realizar uma pesquisa sociológica, baseada em dados estatísticos e documentais sobre, por exemplo, a Papua-Nova Guiné ou o uso de estupefacientes pelas prostitutas egípcias. São objectos de estudo distantes do investigador mas cuja informação lhe pode ser, mais ou menos, acessível. Porém, eu prefiro e sugiro preferencialmente a procura de uma sociologia de proximidade. É certo que esta é mais exigente, pelo maior controlo necessário para que tal proximidade não perturbe a indispensável procura de objectividade com que o investigador deve tratar os seus objectos de estudo. Daí a recomendação de um bom traquejo e experiência prévia em investigações mais tradicionais, isto é, de “meia-distância” entre o observador e a população observada.
A sociologia de proximidade seria então aquela em que uma tensão emocional existe entre ambas as entidades, excitando a apetência do investigador por aquele seu objecto e, mais importante, mobilizando nele uma maior capacidade de atenção para lhe apreender as subtilezas e especificidades, sem efeitos negativos sobre o rigor da análise.
Por exemplo, para um sociólogo em fim de carreira, seria adequado fazer uma sociologia da morte – afastando, claro está, qualquer tentação de morbidez ou de pulsões suicidárias. Mas como fazer uma sociologia da morte? Uma “sociologia dos mortos” não é possível, nem previsível, a despeito dos futuros e inevitáveis progressos no campo científico, desde os domínios das neuro-ciências e da medicina até novas tecnologias de informação e comunicação! Mas, em contrapartida, não parece inviável uma investigação – não da população em geral acerca da morte, caso em que estaríamos, corriqueiramente, em mais uma ilustração de “sociologia distante” – em que a população inquirida fosse a daqueles que se encontram “à beira da morte”. Aproximar-se dos moribundos, conversar com doentes terminais, observar pessoas acidentadas recentemente – eis um procedimento metodológico “de terreno” perfeitamente possível de realizar, com as devidas cautelas. Ou então, numa outra vertente metodológica, proceder a uma análise de conteúdo de escritos testamentários – porque feitos, com a pessoa a pensar seriamente na morte – ou de pedidos ou confissões feitas a pessoas íntimas ou próximas por indivíduos in articulo mortis, seriam outros tantos meios legítimos e possivelmente operativos para uma tal análise.
E certo que já existem “Histórias da morte” (Michel Vovelle, Phillipe Ariès, etc.), paralelas a diversas “Histórias da vida” (o mesmo Ariès e outros). A curiosidade, para a sociologia, é que, existindo também já abordagens sociológicas às condições em que os bébés nascem, julgo nunca ter sido explorado cientificamente o outro extremo do percurso humano – a morte –, salvo no estudo pioneiro de Durkheim sobre o suicídio. 
E, nestas condições, que questões poderia o sociólogo ser levado a formular e inquirir? O fundamental, parece-nos, seria perceber para onde se dirigem ou se focalizam as atenções, as preocupações ou os pensamentos dos idosos em tempos de “finição” (ou “passamento”). Assim, as perguntas – sempre em entrevista muito informalizada, ou em simples observação e tomada de notas imediatamente após – deveriam versar sobre: aquela atenção está sobretudo fixada para a morte (e o seu misterioso desconhecido), para o momento presente, para o futuro dos que ficam, ou para a vida passada? No caso da morte, do pressentido desaparecimento, há no sujeito sinas de ansiedade, angústia, alívio ou conformação com tal destino? No caso do presente, é sobre alguma forma de dor ou sofrimento, ou pelos reflexos que tal possa ter sobre pessoas próximas? Se a preocupação do moribundo se centra sobre como ficará o mundo sem a sua presença, é a sua obra ou reputação que estão em causa? ou a sua preocupação está virada para terceiros, familiares, descendentes ou quem possa sofrer com a sua falta? E se a atenção da pessoa se fixa sobretudo no seu passado, sobre que objectos incide ela: a trajectória da sua própria vida? as pessoas que amou ou odiou? algum acontecimento particular? E despertando que tipo de sentimentos: nostalgia? remorso? indiferença? Etc. Mas compreendo seja pouco provável que estas pistas possam ainda ser úteis a algum colega.
O tesouro psicológico que está dentro de cada indivíduo é inatingível pela sociologia, mas ela pretende compreender, classificar e, até certo ponto, explicar aqueles dos seus comportamentos e ideias expressas que sejam derivados das influências do meio social onde está inserido. 
Várias destas ideias poderiam ter dado origem a debates mais aprofundados e mesmo a investigações teóricas ou operacionalizadas pelas diversas técnicas de uso corrente na sociologia. Não sucedeu assim. E por isso aqui ficam, da forma incipiente como surgiram ao seu autor e tal como agora foram retocadas, apenas para poderem ser minimamente entendidas por outras pessoas.

JF/ 18.Jan.2015

domingo, 11 de janeiro de 2015

Combate ao terrorismo: o que vai seguir-se?

Muitas pessoas viveram neste princípio de Janeiro – no mundo e especialmente na Europa e em França – três dias de angústia, de tristeza, revolta ou exaltação. São estados de ânimo compreensíveis e inevitáveis perante tal tipo de atentados e quando todas as principais cadeias noticiosas internacionais nos fazem seguir, minuto a minuto, as aparentes ou reais peripécias dos acontecimentos, sob forma espectacular.
Mas estes picos emocionais, além de dar expressão a sentimentos e provocar gestos irracionais, também têm a vantagem de nos apelar, um tempo após, à compreensão, à tentativa de explicação do encadeamentos do factos e das causas que porventura os originam.
Para mim, duas ordens de razão parecem dever ser aqui convocadas: a fragilidade do sistema político e do estado francês (e dos estados europeus e dos regimes democráticos do presente, em sentido geral) face a estas ameaças; e a linha de clivagem ética que, cada vez mais, é necessário estabelecer à volta do conceito e das práticas de violência. Vejamos brevemente como elas se configuram.
Passados o horror do choque noticioso, a expectativa da “caça ao homem” e o desenlace mais uma vez sangrento, pode fazer-se aqui um primeiro esboço de análise do comportamento das autoridades e das instituições francesas como tendo mostrado muitas deficiências e debilidades. Muito já tem sido dito, mas parece evidente que o atentado surpreendeu completamente os serviços de segurança e os seus autores puderam passar incólumes nos crivos das “informações” que “ficham” e seguem os potenciais executantes de actos deste género.
Em segundo lugar, a parafernália de meios-de-força postos em campo para capturar os terroristas decerto impressionaram as pessoas comuns da população, mas terão porventura feito sorrir os “profissionais” estranhos ao caso que com certeza o seguiram atentamente. De resto, talvez tenha sido esse – impressionar os telespectadores – o principal efeito deliberadamente procurado. Mas, a despeito da execução do acto assassino ter sido feita com precisão e metodologia militares, a “retirada” deixou logo patentes vários sinais de amadorismo e do isolamento típico de “bandits traqués”, e não de um planeamento terrorista e de uma acção coordenada mais vasta. Ora, contra dois ou três assassinos em fuga que, em seguida, efectuam uma tomada de reféns, os resultados alcançados no final foram apenas sofríveis: libertou-se a maioria dos reféns mas não se evitaram as mortes de mais pessoas inocentes e os bandidos não foram capturados vivos. Mais: a desproporção de meios e poder-de-fogo exibidos eram tais que só me lembraram os desfechos de filmes sobre “bandidos trágicos” – como Butch Kassidy and The Sundance Kid, Bonnie and Clyde ou La Bande à Bonnot – que povoaram o universo mental de muitos jovens ocidentais de há quarenta anos atrás (e a isto voltarei mais adiante). Quando um caso de homicídios e violência se conclui desta maneira, sob a forma de um “massacre”, para certas populações espectadoras os “heróis da fita” acabarão por ser os massacrados, e o ónus da culpa tenderá a deslizar mais facilmente para as forças da ordem. Aliás, resta saber até que ponto o treino destas forças especiais ou (mais provavelmente) a sua cultura profissional – aliada ao natural receio de sofrer danos pessoas na contenda e não considerar suficientemente acautelados os seus direitos e garantias “sindicais” – não incutirão nestes agentes a prioridade de “abater” (ou pôr “fora de combate” os antagonistas), em vez de “capturar, para os levar à justiça”. Por tudo isto, a demonstração de força das polícias francesas terá impressionado e tranquilizado a população mas, simultaneamente, mostrou as suas fraquezas aos potenciais adversários. Imaginemos num cenário fantasista que um estado com os meios da Rússia quisesse amanhã pôr a França no pânico mais absoluto: bastar-lhe-ia sacrificar para tal uns quinhentos homens das “special forces”, com armas na mão ou sentados ao computador; nunca seriam capazes de “tomar conta do país” mas, na semana seguinte à sua intervenção destruidora, ele estaria irreconhecível, desorganizado e caótico.
O terceiro sinal de fragilidade das instituições da França situou-se no plano discursivo dos seus responsáveis. Talvez pelo que acabamos de dizer sobre os serviços militares e de segurança franceses, o presidente Holande deve ter sentido a necessidade de dirigir as suas palavras a estes agentes, com grande destaque. Porém, com isso mostrou a fraqueza em que se sentiram – ao menos por um momento – as instituições da República: ter que apelar (ou louvar, o que vem a dar no mesmo) às forças policiais e armadas, por parte de um governante, é confessar que ele está politicamente “encostado às cordas”, tal como de Gaule se sentiu por volta do dia 24 de Maio de 1968. Mas isto foi só mais um aspecto negativo do modo como o actual presidente se dirigiu ao país, acusando claramente o descrédito em que se encontra perante a opinião pública, num contexto partidário pantanoso/ameaçador e economicamente difícil. Por muito que os conselheiros o tenham instruído e a longa experiência da vida partidária lhe tenha ensinado, o sr. Holande não convence como “emissor televisivo”, mesmo agora com o dedo em riste para mostrar determinação e acentuando os valores da segurança, da unidade nacional e do empenho dos militares franceses em lutar contra o terrorismo fora das suas fronteiras (quiçá para tentar desfazer o preconceito de que a Esquerda não quadra bem com o militarismo). Miterrand também fazia este discurso, em nome da República (como antes dele o haviam feito Millerand, Léon Blum ou Guy Mollet), mas ao menos era convincente. Num ponto, porém, o governo francês mostrou eficácia: é que nenhum sinal dissonante do tom presidencial terá saído da boca de qualquer ministro ou alto funcionário. Nesse aspecto, o Estado e a República funcionam sem falhas face ao exterior, a despeito das mais que certas tensões internas e das solicitações dos media, devendo fazer inveja a vários outros países amigos.      
O discurso da nação necessário para responder a esta conjuntura transmutou-se assim em discurso essencialmente político, no duplo sentido que aqui pode ter: por um lado, completamente inserido no jogo de acções tácticas visando a conservação do poder face aos que lho disputam, o que cheira logo à “politiquice” que tem enjoado as pessoas comuns e as tem “anestesiado” e remetido para o campo da descrença e da “des-inscrição” do espaço da cidadania – prestando, por este meio, um serviço involuntário e gratuito aos desígnios dos dirigentes da extrema-direita francesa; por outro lado, político, no sentido da mobilização do maior número em torno dos valores fundadores dos regimes democráticos: os direitos humanos, o governo representativo, a justiça independente e as liberdades individuais e colectivas, que a República deve proporcionar – e que o terrorismo e a violência política negam em cada acto que praticam. Neste sentido, os desfiles de massas convocados para exprimir estas convicções serão um sinal importante dado ao mundo inteiro, incluindo aos inimigos jurados da liberdade (internos e externos) e àqueles que, por insuficiência de condições, ainda mal a reconhecem.    
Este caso dos assassinos do Charlie Hebdo vai ser um episódio rapidamente esquecido pelas inquietações que a situação económica provoca sobre a maioria das populações e perante as dificuldades dos políticos em lhes responder. Mas, como sabemos, as ameaças de violência terrorista duram há vários anos e vão continuar. Lembremo-nos que, depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, sobre Nova Iorque e Washington, pela Al Kaeda, que provocaram cerca de 2.000 mortos, registaram-se mais uma dezena de outros grandes ataques terroristas. Em Outubro de 2002, em Bali, pela Jemaah Islamiya, com 200 mortos. Também em Outubro de 2002, Moscovo (Teatro Dubrovka), tomada de reféns por separatistas chechenos e repressão russa, com mais de 100 mortos. Março de 2004, Madrid (comboios), Al Kaeda, quase 200 mortos. Julho de 2005, Londres (metropolitano), por terroristas mal identificados, 50 mortos. Novembro de 2008, Bombaim (hotéis, etc.), por radicais islâmicos, 200 mortos. Julho de 2011, Oslo-Utoya, extremista de direita, 60 mortos. Setembro de 2013, Nairobi (centro comercial), Al-Shabab, 40 mortos. Dezembro de 2014, Peshawar (escola), talibãs, 140 mortos. Além de centenas de casos de carros-bomba e pessoas-bomba no Iraque, no Paquistão, no Afeganistão, na Líbia, no Líbano, na Síria, em Israel, etc. E resta saber quantos outros atentados terão sido de facto evitados ou abortados graças à acção dos serviços secretos de segurança.
A seguir ao atentado do 11 de Setembro de 2001 escrevi que as suas principais consequências eram a resposta guerreira norte-americana (de Bush, no imediato sobre o Afeganistão), a repetição de actos terroristas que elevariam as medidas de segurança dos estados democráticos ocidentais até próximo de “estados policiais”, um novo tipo de “corrida aos armamentos” (tecnicamente muito avançados e caríssimos), um indisfarçável confronto civilizacional entre o Ocidente e o mundo árabe-islâmico e, por último, um abrandamento geral da economia com efeitos mais sensíveis nos países ricos. E, em tom pessimista, concluía que «é quase certo que, amanhã, o pirata informático ou o terrorista tecnológico levem a melhor sobre os sistemas de segurança instalados, quaisquer que eles sejam. Numa sociedade que, entretanto, terá perdido a alma e o valor da liberdade.» (A Ideia, 57, pág. 37). Referia-me então à perda das liberalidades experimentadas no Ocidente durante mais de um século e à multiplicação dos controlos que o “Big Brother democrático” iria provavelmente adoptar, sob os aplausos da maioria do povo, quando eu desejava ver alargados a muitos mais essas mesmas liberalidades.
Em trocas de correspondência nos últimos dias sobre estes acontecimentos, vários dos meus amigos exprimiram opiniões, convergentes nuns pontos, discordantes em outros, como é normal. Um, considera indispensável um reforço dos meios do inteligence para lutar contra este flagelo invisível que nos ameaça a todos. Pela minha parte, admito que sim, mas tenho os maiores receios de tudo o que cheira a “serviços secretos”: não pelo velho “reflexo de esquerda” anti-polícias (cujo serviço público reconheço e sei ter evoluído notavelmente nas últimas décadas, na sua formação e práticas, e onde o recrutamento feminino não foi a mais pequenas das benéficas modificações que sofreu), mas sim pelo ethos profissional que se gerará nas condições psicológicas em que imagino devam ter de trabalhar os espiões, ao mesmo tempo que têm o direito e certamente o desejo de serem também “pessoas normais”, com amores e desamores, dores de dentes e desejos de reconhecimento social. Um outro amigo discorda de uma expressão empregue por Cohn-Bendit qualificando este terrorismo de «islamo-fascismo», talvez mais por desadequação nominativa e “confucionismo politicóide” do que por razões da própria análise. E a um terceiro desagrada a “santificação” do jornal satírico agora feita pelos media e pela opinião-de-massas. Julgo que todos têm alguma razão. O que me permite concluir sobre o segundo tópico inicialmente anunciado.
De facto, no que toca à acção política, em sentido forte (isto é, que pretende imprimir ou mudar a orientação da vida colectiva de uma sociedade), parece-me que o uso da violência física contra pessoas (e bens) deva constituir uma linha de separação essencial entre o que é legítimo e o que o não é. Não se trata de “endeusar” as acções de representação institucional (por eleição, etc., que têm o seu lugar numa arquitectura constitucional complexa) nem de fazer das tomadas de posição pacifistas ou da acção directa não-violenta a panaceia para qualquer vontade de resistência ou reivindicação. Até porque todos estes métodos têm os seus limites e as suas contra-indicações. Mas trata-se, sim, de traduzir o sentido humanista e universalista que se tentou plasmar na Declaração Universal dos Direitos do Homem após a catástrofe que constituiu a II Guerra Mundial. Aquele texto diz tudo o que pode e deve interessar às pessoas e aos povos do século XXI, ao mesmo tempo que permite todas as necessárias adaptações aos momentos e circunstâncias concretas. Nestes termos, o recurso à violência material – seja nas mãos das entidades públicas, seja nas forças políticas e movimentos sociais ou nos próprios indivíduos – deve constituir sempre um último recurso, um derradeiro meio de defesa ou a única forma de impedir males maiores e nunca ser um mero instrumento ao serviço de um qualquer objectivo ou causa. E só nessas condições – devidamente codificadas e sujeitando-se a verificação quando ocorram – a violência pode ser legítima e mesmo necessária.
Diferentes, embora vizinhas, são outras formas violadoras da expressão e da acção humana e social, tais como as ofensas a crenças, convicções, direitos e interesses legítimos, ou o impedimento do seu exercício. Mas tudo tem aqui de ser sopesado e limitado pelo princípio dos iguais direitos e garantias de que devem dispor todos os terceiros. A liberdade de imprensa – como liberdade de pensamento e de expressão – é um direito fundamental nas sociedades livres. Tal como o é a liberdade religiosa. Mas as respectivas transgressões devem ser ajuizadas e dirimidas em tribunais independentes, não por via de censura administrativa, ameaças ou golpes de força. Porém, é preciso atender à evolução dos tempos, das economias, das sociedades e das culturas. A liberdade de imprensa, tal como foi codificada no século XIX, revela-se desajustada para enfrentar os usos da Internet e das “redes sociais” numa comunicação globalizada. Pessoalmente, prefiro confiar antes no reconhecimento pelos próprios profissionais da necessidade de voltarem a debater a questão da “responsabilidade social” dos comunicadores, dos criadores e dos artistas, pois lembro-me demasiadas vezes das mensagens transmitidas por filmes como If… ou O Clarim da Revolta e da forma como elas terão sido recebidas por muitos jovens de então, sabendo que hoje as coisas vão bem mais longe, neste campo.
E, tal como refere Narciso Machado a propósito da Aliança das Civilizações criada pela ONU em 2007, desejaria também acreditar que o “confronto de religiões”, no sentido da «procura da verdade e dos valores humanistas do terceiro milénio […] poderá ser equacionado do seguinte modo: procurar convergências, respeitar diferenças e atenuar divergências de tal modo que a universalidade faça da tolerância um dever» (Público, 10.Jan.2015).
Oxalá.
JF / 11.Jan.2015

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Charlie

Os assassinos poderão continuar a matar pessoas, e estrategas fanáticos a planear atentados. Mas a liberdade defende-se e vencerá os obscurantismos. Não recuaremos, nem voltaremos aos piores dias do século XX. Eu também sou francês e sobretudo cidadão do Mundo!

João Freire / 7.Jan.2015

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A senhora Ângela Merkel, o Syriza e a hipótese democrática na Europa

A notícia dos últimos dias refere-se ao facto que o Der Spiegel teria afirmado que a senhora Ângela Merkel ameaçou a Grécia com a saída do Euro se o agrupamento político conotado com a esquerda radical grega, o Syriza, ganhasse as eleições e levasse por diante o seu programa. O resultado dessa escolha democrática seria assim o “Grexit”, ou seja, a saída forçada da Grécia da zona euro.
Esta muito difundida revista alemã tem estado muito atenta àquilo que chama “roleta grega” e aos seus assuntos, sugerindo que Alexis Tsipras e o Syriza ainda não se decidiram se queriam ficar no Euro ou regressar ao dracma, como se pode ler aqui. As promessas feitas em campanha, se levadas a cabo, representariam uma despesa (ou investimento) de 11 biliões de euros, que “os mercados” não estarão disponíveis para avançar.  A saída do euro será no contexto actual inevitável.
No quadro deste noticiário especulativo e hostil ao programa da esquerda grega, aparentemente ameaçadora para a ordem constituída, revela-se um grau de intromissão insuportável na escolha dos cidadãos de estados europeus por parte de um chefe de governo estrangeiro. Isto ocorre num país que tem estado sujeito há anos a um diktat europeu, próprio de um país sob ocupação estrangeira.
A senhora alemã terá posteriormente negado o facto e já alguém sugeriu, parafraseando Bismark, que um facto político internacional só se confirma no momento em que é desmentido pela potência visada. Porém, não deixa de ser verdade que apurar factos é um exercício difícil quando o jornalismo se confunde com propaganda de guerra e os factos propalados aparecem num contexto de enorme opacidade na diplomacia e nas decisões - um dos factores que, afinal, tem sido apontando como estando na origem da I Guerra Mundial.
A adesão à Comunidade Europeia tem implícita uma alienação de competências legislativas para esferas supranacionais, essencialmente não democráticas, como a Comissão Europeia, que através das suas directivas, governam de facto o espaço europeu. Essas directivas, que afectam directa ou indirectamente todos os aspectos da vida comunitária, são convenientemente transpostos para as leis nacionais, dando a ilusão da permanência do governo nacional e da capacidade de decisão democrática dos cidadãos europeus. Ora, esta decisão pode apenas existir enquanto subsidiariedade do direito europeu, da mesma forma que um presidente duma junta de freguesia, embora mandatado pelos cidadãos para gerir aquela unidade administrativa, está condicionado na sua acção pela leis de instâncias superiores. 
Neste contexto, a democracia fica reduzida ao princípio da subsidiariedade pelos parlamentos nacionais. Apesar do reforço recente das competências do parlamento europeu, a democracia tem vivido da ficção mantida no quadro dos estados nacionais e, principalmente, duma idealização difusa e perversa sobre o que isso seja. Essa democracia resultaria, afinal, mais de um conjunto de princípios e de valores do que duma arquitectura superior que foi concebida e liderada por elites europeias interessadas, acima de tudo, no seu próprio bem-estar através da resolução de antigos problemas nacionais internos e externos. No conjunto, as instituições que actualmente conformam a Europa e o governo europeu estão longe de poderem ser considerados democráticos (num sentido liberal ou não).
A adesão à Comunidade Europeia, por paradoxal que possa parecer, foi uma componente essencial do processo de consolidação da democracia interna dos países mediterrânicos que estavam a sair tardiamente de regimes ditatoriais filofascistas, tal como representou depois uma âncora para os países de leste que se afastavam de regimes políticos mais do que desgastados e desacreditados. Ora, mais do que o seu programa económico e social liberal, era a mira do progresso material obtido através do acesso a bens essenciais (alimentação, saúde, habitação) a par do conforto, do luxo massificado e da quinquilharia electrónica, combinada como uma espécie de social-democracia nascida com o trabalhismo europeu, consagrado em alguns direitos sociais, que era vendido como o essencial da democracia europeia e dos seus méritos. É esta liberdade de supermercado, a par da ilusão da construção duma classe política aberta pelo voto, que hoje atrai possivelmente os ucranianos para o Ocidente. E com razão, vistas as alternativas. Mas a democracia não passa dum modelo de decisão que idealmente tende a igualizar o poder de todos os cidadãos na deliberação dos assuntos públicos que lhes dizem respeito. O seu contrário é a oligarquia, ou seja, a concentração num grupo muito restrito de pessoas, através dos recursos que dispõe, a capacidade de comunicação e de propaganda, de organização pública, de mobilização e, finalmente, de estabelecer as regras em que se fundamente a vida da comunidade.
Nos anos ’50, Bertrand Russell lançava o seguinte desafio intelectual aos seus alunos: onde preferem viver – num país que vos dá pão mas vos tira a liberdade, ou num país que vos dá a liberdade mas não vos garante o pão? Mais do que uma metáfora entre dois regimes concorrentes da guerra fria, era uma metáfora que assentava na propaganda e o filósofo libertário sabia-o.
Os gregos vivem hoje numa Europa que lhes tirou as ilusões e o pão, deixando-lhes a liberdade para escolherem entre dois tipos de inferno - um menos mau do que o outro. Na falta de provas, para os cidadãos reduzidos à sua condição de eleitores a política transforma-se numa questão de crenças. A Europa nesta altura tem já meios para suportar a saída da Grécia da sua zona sem que, com isso, crie um abalo sistémico a um Euro sobrevalorizado, desenhado para convir aos alemães.
Persiste, no entanto, o risco de contágio. A hipótese do sucesso das medidas sociais-democratas e populares levadas a cabo por uma nova força política diabolizada pode arrastar-se pelo menos a Espanha e a Portugal, os quais poderão vir a comprometer a segurança do actual sistema. No mínimo dará um mau exemplo a esta Europa construída por elites para salvar as burguesias nacionais de outros riscos diferentes. A ameaça da saída do Euro (que na prática significa também a saída do mercado europeu) é assim a parte desagradável duma necessária chantagem para manter esta Europa comandada pela alta finança internacional, politicamente liderada pela Alemanha, e suportada pelo complexo militar americano.
P.G.

Arquivo do blogue