Contribuidores

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Economia sem números para leigos

A economia é, academicamente, uma ciência recente mas a sua prática social terá começado há milénios quando as comunidades humanas se meteram a produzir mais do que consumiam e, em vez de armazenar o que podia sê-lo ou oferendar aos deuses, trataram de trocar esse excedente com produtos de que careciam ou apreciaram, oriundos de outras comunidades. A troca, e a necessária busca de um “equivalente de valor”, está, pois, na génese da economia. Até então (e prosseguindo sempre, embora em histórico declínio) colectavam-se os frutos da natureza, roubava-se, pilhavam-se recursos alheios, destruíam-se concorrentes, etc., mas isso não era economia: eram actividades diferentes, do âmbito da luta pela sobrevivência, da agressividade humana ou da guerra, que ainda hoje subsistem, imperfeitamente civilizadas.
Entre os séculos XVII e XVIII, bons pensadores filosofantes empreenderam o esforço de dar uma base racional rigorosa a esta actividade humana, articulando-a com a “riqueza das nações” (Adam Smith), procurando definir melhor os factores criadores de valor (a posse da terra, o capital amealhado, o trabalho) e esclarecer matematicamente os processos de formação dos preços dos produtos. Mas já havia séculos que inteligentes matemáticos hebraicos tinham calculado os mecanismos do crédito e da usura (e, claro, daí tirado benefício); e muito mais tempo havia passado desde quando certos poderes políticos haviam normalizado a moeda, para mais facilmente cobrarem o tributo – mas contribuindo também poderosamente para facilitar as trocas e o comércio. Às antigas civilizações mediterrânicas devemos todos nós esse incentivo.
O comércio é, pois, historicamente mais recente do que o esforço de produção (semear, colher, fabricar, pescar, caçar), mas talvez tenha introduzido nas relações humanas um primeiro quantum de pacífica convivência, por interesse mútuo, com possibilidades de expansão ilimitada. Mas um quantum de interesse e benefício mútuo quer dizer isso mesmo: uma porção, não a totalidade ou a obrigação forçosa que assim seja. De facto, esta relação social biunívoca e vantajosa para ambos – vendedor e comprador – também se presta ao desenvolvimento de outras “paixões humanas” menos interessantes:  a ganância, o engano ou a extorsão. O interesse mútuo do vendedor e do comprador no mercado e no acto de mercadejar é dobrado pela oportunidade ou o estímulo do mais forte enganar ou esmagar o mais fraco, deixando-o ainda assim na dúvida se não se tratou de uma troca ou de um contrato justo.
A permuta de bens móveis e mercadorias alargou-se aos bens fixos, fundiários (terras e edifícios), já garantidos por normas de direito (leis e contratos) que haviam vindo consagrar as circunstâncias da posse (pelo uso continuado), da conquista ou do roubo. O comércio alargou-se também, mais tarde, à negociação e troca de direitos de propriedade e de outras vinculações que abrangiam tanto coisas como as próprias pessoas. Do “direito de presa” – da guerra ou de outras formas de violência sobre os vencidos – terá decorrido a opção dos vencedores em guardarem ou venderem a terceiros os seus cativos. E daqui se originou a secular prática antiga da escravatura, que hoje tanto nos repugna mas que era ainda uma realidade presente, embora em extinção, no tempo dos bisavós dos mais idosos de hoje (e de que nós, pelo menos, sabemos o nome). Por outro lado, a iníqua “relação de forças” entre proprietários poderosos, de um lado, e populações miseráveis, do outro, condenou ao longo de inúmeras gerações estas últimas à condição servil de sobreviverem da árdua labuta da terra ou da pastorícia mas em que a porção principal desse resultado ia directamente para usufruto do proprietário. E em certas regiões a “superestrutura” social criou um conjunto harmónico e blindado de crenças – tradições, normas jurídicas, transmissão por herança, guerras justas, alianças matrimoniais entre poderosos, consagração religiosa, etc. – que deu viabilidade aos condados feudais, aos reinos e aos impérios, os quais, a despeito do barbarismo do método, impuseram uma certa “ordem social e económica” durante séculos a grandes teatros de conflitos, como foi o caso da Europa e da bacia mediterrânica.   
No seio dessa “ordem”, a prática das transacções comerciais começou a ser regularizada por acordos e posturas corporativas e comunais, e também por acção do poder político aí dominante, através de instituições como as feiras e mercados, as vilas francas (isto é, livres de impostos mais gravosos) ou a protecção das caravanas e almocreves, ainda então muitos sujeitos à rapina dos salteadores de caminhos. Por outro lado, o desenvolvimento do comércio marítimo medieval e renascentista obrigou à necessidade de reunir elevados montantes financeiros para financiar a construção, armamento, pagamento de equipagens e elevados stocks de mercadorias, ao mesmo tempo que suscitava a criação de mecanismos de asseguramento contra os riscos do acidente marítimo, que eram então geralmente calamitosos e totais. A banca, o crédito e o seguro tiveram aí a sua grande experiência para se virem a constituir como instituições indispensáveis ao progresso económico, quer esse papel tivesse sido então assumido por empreendedores privados (negócio em que ricos judeus se mostraram exímios e sem os escrúpulos cristãos ou muçulmanos acerca da ilicitude da usura ou da agiotagem), quer por guildas ou ligas das corporações mais ligadas à circulação económica, sobretudo no norte da Europa.
A tal ponto o sucesso deste processo económico-financeiro foi grande que, muitas vezes, os detentores do poder – político, militar, jurídico e da capacidade de levantar impostos, quase sempre com a justificação do beneplácito divino – passaram a ter que a ele recorrer para conseguir os fundos necessários para financiar campanhas militares ou a construção de castelos e catedrais. Isto é: conseguindo os seus objectivos mas ficando forçados a endividarem-se e a pagar os respectivos juros e, no modo combinado, o capital emprestado. Embora aqui se tratasse ainda, realmente, de negócios privados das grandes casas reinantes, a natureza regaliana destas entidades conferia-lhes já, em germe, o carácter de intérpretes de um “interesse público”. Quando o Estado – ainda que interpretado pessoalmente por um monarca – pedia emprestado dinheiro a quem o tinha, em vez do habitual lançamento de novos impostos, estávamos realmente já a falar de “dívida pública” e das condições da sua solvabilidade.
No Meridião, este papel económico-financeiro coube também, em parte, a ordens militares-religiosas, em parte a coligações aristocráticas ou oligárquicas,  ou ainda, mais tarde, a monopólios comerciais criados ou garantidos pelo poder político: por exemplo, a nossa Casa da Índia (a seguir à da Guiné) para o ouro e as especiarias, ou foi assumido através das prerrogativas concedidas a longínquos agentes representantes do poder real (vice-reis, capitães-mores, etc.)
Esta realidade económica-financeira não foi substancialmente alterada até ao século XVIII, nem sequer com o aumento da escala das grandes companhias formadas para o comércio intercontinental, em seguida à aventura descobridora de portugueses (e outros seguidores): o entreposto de Antuérpia ou as Companhias das Índias holandesa e inglesa, que controlaram durante três séculos este comércio de longa distância, trazendo para a Europa os produtos exóticos aqui apreciados e exportando mercadorias além inexistentes. Mas também nesta época se foi organizando de forma sistemática e maciça o comércio de escravos de África para as Américas, onde eram patentes as necessidades de mão-de-obra e tentadoras as oportunidades de exploração agrária extensiva (cana do açúcar, algodão, etc.), para além das riquezas da pastorícia (para a exportação de peles) e da extracção das jazidas mineiras proporcionadas por esse “novo mundo”.
O que alterou decisivamente este quadro foi a revolução industrial do século XVIII na Grã-Bretanha (depois em França, na Bélgica, Alemanha, etc.) com as grandes manufacturas, a aplicação da força motriz das máquinas a vapor e uma divisão-do-trabalho mais avançada, superando os antigos métodos de trabalho artesanais. Dentro deste modelo, desenvolveram-se particularmente as indústrias têxteis e metalúrgicas – também as da madeira, do papel e, com mais atraso, as químicas – e, a montante, a mineração do carvão e do ferro. A jusante, requeriam-se novos mercados extensos, que foram sendo constituídos pela procura interna (vestuário, utensílios e habitação urbana), pela exportação (incluindo os prometedores mercados de infraestruturação básica dos territórios de além-mar, que também ofereciam para a troca matérias-primas interessantes como o algodão, a borracha ou as oleaginosas) e pelas despesas públicas do Estado moderno (tanto com as obras públicas e sumptuárias, como com as sociais e as destinadas à guerra). Mas tudo isto carecia de enormes volumes de investimento financeiro. As riquezas acumuladas pela nobreza ao longo de gerações estavam sobretudo investidas em propriedades fundiárias, não directa e imediatamente convertíveis em dinheiro para adquirir maquinaria, comprar matéria-prima e contratar trabalhadores. Pior ainda com os novos burgueses que, contudo, dispunham da importante vantagem de aceitarem correr riscos, em vista de um lucro futuro.
Nestas condições, é compreensível que o século XIX, já com a produção industrial a encontrar mercados consumidores nos quatro cantos do mundo, tivesse também assistido ao aparecimento e formalização jurídica de novas entidades como foram as sociedades anónimas e por quotas, as bolsas de valores, os bancos e companhias seguradoras na forma moderna sob a qual ainda hoje os conhecemos. Estas últimas jogavam no cálculo de probabilidades que nos diz que o acidente só ocorre de vez em quando e a catástrofe apenas raramente, estabelecendo o valor dos “prémios” com uma conveniente e segura margem de lucro. Os bancos recebiam os depósitos que remuneravam com juros; e emprestavam, mediante garantias e cobrando igualmente juros, com regras prudenciais para nunca caírem em situação de “descoberto”. O crédito tinha, pois, chegado à economia como um factor essencial e indispensável do crescimento, por agora ainda essencialmente reservado às grandes empresas e projectos, já que a classe média preferia então aplicar as suas poupanças em investimentos imobiliários (para aluguer, rendendo alguma coisa), e aos pobres restava, quando muito, a associação mutualista.     
O século-e-meio transcorrido até agora assistiu à exibição e confronto (por vezes violento) de poderes de vária outra natureza (política e ideológica, militar-estratégica, social “das-grandes-massas”, da imprensa e outras formas de comunicação informativa e cultural, etc.), mas sempre com a constante presença de duas outras “variáveis independentes”: a da economia (dita “real”) e a do capital financeiro, interdependentes uma da outra, às vezes com os processos de produção-circulação-consumo a parecerem impôr-se a bancos e seguradoras (ou aos cartéis e trusts financeiros que já Lénine apostrofava), quase sempre por força de intervencionismos estatais; outras vezes com estas instituições (mais os recentes “fundos financeiros”, reciclagens de rendimentos ilícitos, ganhos especulativos “de oportunidade”, etc.) a determinarem as condições de produção e o nível de vida das mais extensas camadas da população. É hoje o caso, com a agravante de, nos países mais desenvolvidos, as “classes médias” terem passado a ser grandes consumidoras de bens e grandes utilizadoras do crédito para as suas necessidades de consumo.
O poder de Estado surge aqui com uma capacidade de imposição fora do alcance de qualquer dos outros grandes actores deste complexo jogo, que já há muito ultrapassou as fronteiras nacionais. Por isso (além do resto), esse poder de Estado se tornou um objecto apetecível para aquelas forças (ideias e interesses organizados) que entendem dever forçar todo o conjunto da sociedade (cidadãos, instituições, empresários, trabalhadores, práticas sociais, tradições e projectos) à suposta bondade das suas soluções e às convicções de que se julguem ungidos. O problema maior é que, embora importante no caso das grandes nações, o poder do Estado nacional e hoje muito pequeno para controlar um sistema de trocas económicas e de mobilidade financeira que funciona, em grande medida, à escala mundial. 
Em todo o caso, é por estas razões que se mantêm tão fortes as relações entre a economia e a política – mas de modo assaz diferente daqueles que se verificaram no passado. Na hora actual, para além da percepção dos seus mecanismos fundamentais, é preciso também conhecer alguns números para se conseguir ter uma ideia aproximada de como a economia e a política se entrelaçam e condicionam mutuamente. O que não está ao alcance de muitos e é sempre um trabalho cheio de armadilhas.
JF / 20.Maio.2016

Arquivo do blogue