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quinta-feira, 9 de março de 2017

Modas… (sem bordados)

Sic transit gloria mundi! Assim se consolavam os antigos perante a inevitável precariedade das glorificações humanas!... Hoje, o “transit” (ocidental-mundial) acelerou a sua rotação e alargou a base de recrutamento, para o melhor e para o pior.

Como indivíduos “modernos”, só podemos fazer um balanço finalmente positivo dos duzentos anos ultimamente percorridos pela Humanidade: abolimos a escravatura e a servidão; implantámos quase por toda a parte Estados-de-direito formalmente democráticos, em que a população elege os seus governantes; criámos regras jurídicas e mecanismos judiciais para controlar os comportamentos anti-sociais; a economia cresceu enormemente, tal como foram notáveis os progressos da ciência e das aplicações tecnológicas, da saúde pública e da educação popular; começamos a saber explorar o espaço sideral; desenvolvemos uma “classe média” relativamente culta e abonada, donde se recrutam as novas elites dirigentes; os “princípios revolucionários” de há dois séculos (a liberdade e a igualdade) encontraram formas de concretização parcial mas palpáveis; desencravou-se o operariado do ghetto social em que tinha caído e activou-se finalmente o processo da emancipação da mulher; e existem canais de comunicação fáceis entre os líderes nacionais para tentarem entendimentos que salvaguardem os interesses que representam.

Mas, no outro prato da balança, o passivo é também pesado: aumentou provavelmente a distância entre nações no que toca à distribuição da riqueza gerada (ou apropriada), o mesmo acontecendo entre as elites sociais e a multidão dos “deserdados”; as rivalidades “nacionais” e “de blocos”, ou ideológicas, levaram a numerosos confrontos armados, incluindo duas guerras mundiais devastadoras; e a industrialização e a exploração intensiva dos recursos naturais produziram danos fortíssimos sobre o meio ambiente.

Outros processos contêm tensões internas e efeitos mais contraditórios. Por exemplo: a colonização ocidental de parte dos povos da Ásia e de quase toda a África destruiu pela força as socioculturas e as economias locais impondo o seu domínio por largo tempo mas, simultaneamente, abriu-lhes caminhos para uma modernização social que de outro modo dificilmente alcançariam. Também: a economia de mercado capitalista (actualmente globalizada) produziu muitos estragos, mas criou e distribuiu riqueza por muito mais gente, sem qualquer comparação possível com os séculos anteriores. Igualmente: a actual “sociedade da comunicação” abriu estrondosamente as portas da informação e do conhecimento às pessoas e às mais largas massas populares, mas estarão estas culturalmente preparadas para esse salto-em-frente? (ou cairão como patinhos em todas as armadilhas que os mais “espertalhões” lhes proponham?) Ou ainda: a individualização e a secularização ocorridas nas sociedades modernas (com a laicização do Estado) constituíram um progresso civilizacional inestimável mas, levadas ao extremo (como parece estar a suceder), trazem consigo um confronto de egoísmos e, no fim, para os mais frágeis, o desespero do “Homem só” (de que se estão aproveitando os fanáticos religiosos de algumas confissões).        


Há questões em que a tolerância, o excesso de liberdade ou a indiferença acabam por agravar dificuldades de convivência ou integração social. Num plano menor (mas ainda assim significativo), temos entre nós as praxes académicas, sobretudo na humilhação que praticam sobre os caloiros e que, de ano para ano, não dão mostras de abrandar na reprodução clássica do processo praxado->praxista (=oprimido->opressor, em miniatura) apesar do escândalo de alguns casos mediatizados. Os professores (nós, em geral) olham para o lado, os reitores sentem-se incomodados mas impotentes, todos têm receio de “afrontar os jovens” e a cretinice juvenil vai-se reproduzindo, se não em escala, pelo menos em profundidade aumentada. Proibir legalmente também não adianta, pois facilitaria o conhecido encadeamento psicológico da provocação-repressão-vitimização-mobilização alargada. Uma resposta eficaz terá de vir do próprio seio da comunidade juvenil, mesmo porventura através de processos conflituais que venham a desencadear-se entre “tradicionalistas” (da capa preta) e “paisanos” (a “malta” mais liberta de preconceitos). Mas é importante que a academia e os mais altos responsáveis dêem também sinais encorajadores, como felizmente aconteceu no início do corrente ano lectivo com o ministro Manuel Heitor ou com a tomada de posição opinativa do professor Elísio Estanque, de Coimbra. 

Mais sério é o caso dos sem-abrigo e da mendicidade, que também podem entrar neste quadro. Bem sabemos como o Estado-repressor do tempo dos nossos avós deportava para as Áfricas os vadios, misturados com outros indesejados. E, há meio-século, como as pobres peixeiras sem licença fugiam a bom fugir dos polícias de turno. Mas tolerar a permanência de miseráveis, andrajosos e drogados (decerto, alguns doentes) a dormir pelas entradas dos prédios (alguns com cães, numa patética comunhão de desgraças), quando existem (ou seria fácil criar) dormitórios, balneários e refeitórios onde essa gente poderia ser regularmente assistida, não é levar longe demais a liberdade de circular ou permanecer, sem cuidar do ambiente de bem-estar colectivo a que os cidadãos deviam ter direito, ou até da saúde pública? O prestimoso serviço social de apoio que lhes prestam nas ruas diversas associações de solidariedade não tende também ao prolongamento destas situações, alijando por outro lado o Estado das suas responsabilidades? Na verdade, a hipocrisia dos responsáveis políticos revela-se neste pormenor: na zona que frequento em Lisboa, os sem-abrigo desapareceram das ruas durante a semana do Web Summit (e as composições do Metro foram duplicadas) mas, passado o “evento”, tudo voltou à primitiva forma. Valem mais os turistas estrangeiros do que os cidadãos?

Algo de parecido se poderia dizer da autêntica promoção pública que hoje é feita dos “comportamentos LGTB”, ao abrigo da lei e tentando sempre levá-la mais longe, sem cuidar da sensibilidade da maioria. Passou-se da terrível repressão (legal e social) que sobre os homossexuais se abatia para um pólo oposto, em que qualquer observação crítica para certos comportamentos ou normas a este respeito é logo tomada por “homofobia”, tal como o gosto da tauromaquia é tomado como manifestação de ultramontanismo cavernícola e a rejeição de certas práticas e concepções do islamismo tende a ser apostrofada de “islamofobia”.

Neste último caso, parece-nos que deveriam ser feitas várias distinções: a aceitação como residentes (de todos, mas em especial de pessoas de culturas muito diferentes, como a corânica ou a hindu, etc.), ter como contrapartida a verificação de certas condições, entre as quais um razoável domínio da língua e das leis e normas aqui vigentes; a prática daquelas religiões ser livre, mas não subsidiada; a escolarização das crianças ser obrigatória, como para as demais; a poligamia não ser legalmente reconhecida (eventualmente subsistindo no âmbito de outras uniões de facto); práticas de violência doméstica (como as excisões femininas) serem proibidas; em contraposição, o uso de indumentárias tradicionais de certas culturas ou religiões não deveria ser sancionado (para isso bastando a censura social que possam suscitar), salvo para identificação por razões de segurança pública. Apesar das evidentes dificuldades do dilema – simplificando: ignorar/tolerar ou proibir legalmente as burcas ou burquinis nos nossos países ocidentais – tendo a afastar-me das posições manifestadas pelo politólogo André Freire sobre estas matérias (nas edições do jornal Público de 6 e 28.Set.2016), e sobretudo no que toca à sua argumentação relativa a um confronto entre liberdade religiosa e igualdade de género, que endossa um “politicamente correcto” no qual não me reconheço. Neste ponto, vale a pena relembrar o que escreveu Franz Fanon nos anos 50 sobre o papel simbólico do retorno a estes comportamentos sociais arcaicos, em contexto de grande conflitualidade política/civilizacional.

Mas a questão da educação familiar é mais lata e complexa. Todos os espíritos livres e emancipados saudaram o fim legal da indissolubilidade do casamento imposta pela religião católica, que soou o toque de finados à manutenção de muitos lares infelizes e ao regime burguês do “amantizato”. Muito bem: o casal deve manter-se apenas enquanto a mulher e o homem nele livremente acreditarem! É certo que o direito civil procurou acautelar os interesses dos filhos menores e a responsabilidade parental pelo seu sustento e educação. Mas todos sabemos dos dramas que frequentemente se geram nestas situações de desavença, quase sempre em prejuízo dos filhos, e também das mulheres. Isto, para afirmar que não bastam regras de direito para criar e manter um ambiente societal que seja entendido como justo para todos – os casados e os descasados, os solteiros e os recasados – e sobretudo que seja formativo e equilibrante para os filhos pequenos dessas ligações. Ora, é essa “moral social” – premiadora dos exemplos bem-sucedidos e censuradora dos casos traumatizantes – que hoje está terrivelmente ausente na nossa sociedade pós-moderna onde todos os meios parecem lícitos para se atingir um qualquer “estrelato”, seja em Hollywood ou na Reboleira, no mundo do espectáculo ou nas páginas de abertura dos media. As rupturas estéticas ocorridas no século passado na pintura ou na música (ou mesmo na literatura) corresponderam aos traumatismos que abalaram a Humanidade nesses tempos, mas deixaram-nos heranças muitas vezes pindéricas: por exemplo, é muito compreensível que na estética do vestuário predomine agora geralmente o prático, mas o leque alargou-se e integra hoje o feio, o repelente e o desleixado.

Entre nós, fazendo honra ao “politicamente correcto” – de que constitui modelo insuperável a escrita culta e de qualidade da jornalista itinerante Alexandra Lucas Coelho –, as touradas vão rareando dos programas da TV, já aparece na televisão do Estado um repórter brasileiro com o melhor sotaque de Copacabana fazendo aqui o “serviço de rua” (e objectivamente trabalhando contra a língua portuguesa falada em Portugal) e só talvez os programas na rádio de David Ferreira nos recordem o extraordinário talento do saudoso Zé Pracana e se lembrem do dedilhar de António Portugal e da genuína voz nacional do Adriano cantando Trova do vento que passa, o imortal poema de Alegre (que escreveu outras coisas magníficas, mas apenas fez carreira de político de regime). Se, ao menos, este se dispusesse ainda a encabeçar, com outros nomes de ressonância pública, um movimento de opinião contra a avassaladora e estupidificante moda dos comentários futebolísticos nos canais televisivos “de informação”!... (Mas para responder às acusações de “só vermos o copo meio-vazio” que, com razão, nos podem ser dirigidas, saudamos aqui as medidas de política florestal anunciadas no Outono pelo governo em funções, que nos parecem ir no bom sentido e não visarem só a próxima temporada. A ver como se concretizam tais intenções…)

Também o desporto está tornando quase iguais e mais lisos os corpos das mulheres, sendo já poucas as que denotam seios salientes em modalidades de alta competição. A alimentação, o exercício físico, o adiamento da maternidade e aleitamento, e os estereótipos visuais devem estar contribuindo para tal.

Mas como na sociedade-do-efémero quase tudo se sujeita às leis da moda, é reconfortante manter a esperança de que também amanhã irá passar a actual moda corporal e vestimentária “do diferente e do bizarro”. Os industriais e vendedores hão-de inventar novos produtos de sucesso para continuar a alimentar as suas “máquinas de lucros” e a economia em geral. Talvez que então as mulheres desgostem das botifarras-à-tropa, dos pés mal cheirosos enfiados em chanatos com as unhas grosseiramente pintalgadas! Que os rapazes se libertem dos cortes de cabelo “à tijela” e da transpiração das sovaqueiras pouco lavadas, como se estivessem sempre a praticar desporto! E que proliferem os estaminés especializados em limpar tatuagens, antes que um Big Brother tenha montado um registo mundial dessas marcas identitárias pessoais!

Mas chega, por agora, de lamentações e maus presságios!


JF / 10.Mar.2017

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