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sexta-feira, 5 de maio de 2017

O assentamento de Iago

Da memória que tinha de toda a sua vida, Iago achava que procurara sempre guiar-se segundo princípios de racionalidade e coerência. Algumas frases aprendidas na infância ainda lhe vinham à cabeça, não como mandamentos mas como recomendações fortes de alguém que sabia mais do que ele e que tinha vivido outras vidas mais difíceis e empolgantes ou valorosas. Também porventura do catolicismo inicial lhe tivessem restado algumas imagens, mas decerto não tão fortes como algumas outras que pudera presenciar ou pressentir já em plena idade adulta.
As evoluções e as rupturas vieram quando tinham que vir. Com a naturalidade e o dramatismo que deveriam ter. (Mas disso só nos apercebemos depois.) Por felicidade, o corpo nunca sofrera rasgões graves. O ânimo, mais ou menos, mas com o sopro da sorte finalmente quase sempre do seu lado – reconhecia agora.
De facto, nunca nada se lhe havia oferecido de mão beijada (salvo uma vez). Tudo o que parecia alcançável se transformava afinal em enredos e dificuldades, em aborrecimentos e angústias que abriam a porta para novas decepções ou outros embustes. Mas, finalmente, como depois de uma noite de temporal ou de maus sonhos, a luz voltava quase sempre cheia de sentimentos de realização e mesmo por vezes acompanhada do reconhecimento de terceiros.
Como em tudo, de acumulação e de rupturas fora feito o caminho de Iago. O primeiro e mais importante destes processos fora provavelmente aquele em que substituíra a noção de pátria (mesmo na elaborada versão da mátria) pela outra, mais alargada, de humanidade. Nenhuma delas, escrita com letra maiúscula; mas sempre aí integrando um sentido de viver-com-os-outros, que não era decerto o “amai-vos uns aos outros” judeo-cristão nem o “matai-vos uns aos outros” de certo romancista, mas também não os excluía. Uma segunda mutação foi talvez a da ordem para a criatividade, sem que porém esta negasse totalmente aquela. E vindo mesmo a descobrir a notável importância das rotinas, para si e para a maioria esmagadora das pessoas organizarem as suas vidas com menos riscos de choques frontais.
Quando tinha de tomar decisões importantes, assumia-as com todas as suas consequências, mas situava-se geralmente no quadrante oposto ao daqueles que, sobre qualquer assunto, falam sempre de maneira peremptória e definitiva.
O amadurecimento deu-lhe, como a todos, mais oportunidades de pensar sobre o seu tempo. Um “tempo” que sempre lhe aparecera como um espaço alargado de procura de entendimento (e de envolvimento) que abrangia as duas ou três gerações antecedentes: aquelas de quem podia reconstituir, de memória, cheiros e timbres de voz, olhares e gestos, relatos de histórias concretas, além da verificação dos escritos documentais, dos objectos, das pedras e dos lugares. Mais do que debater ou argumentar (e muito menos discursar, com aplausos ou apupos, o interesse ou alheamento dos discípulos), essas trocas só o enriqueciam pelo que era capaz de trazer para casa, e “ruminar” nas noites seguintes. Reconstituindo a sua própria trajectória, um tanto acidentada e não-linear, ocorria também perguntar-se qual destas adjectivações – diversidade, multiplicidade, contraste, contradição, paradoxo – seria a mais apropriada para o seu caso.

Às vezes, pelas circunstâncias agora vivenciadas em idades mais avançadas, Iago sentia-se algo deprimido mas simultaneamente apaixonado, por tudo o que conhecia e de que pudera usufruir, e também amar (embora por vezes subvertendo a realidade), sabendo aproximar-se paulatinamente o dia em que nada disto restaria, salvo alguma boa recordação deixada em terceiros. Era um sentimento reprimido mas que, apesar de tudo, conseguia escapulir-se ao seu modo desejado de reflectir que, talvez sobretudo por “deformação profissional”, tendia a ser fundamentalmente racional, histórico e teórico-prático.

Iago apreciava agora um pouco mais sentar-se, reflectir sem programa ou não pensar em nada. Às vezes, seguindo apenas as notas de uma música funda passando na rádio. Outras, vendo os jogadores agitarem-se no ecrã e correrem na disputa da bola mas sem lhes ligar qualquer importância, à espera de um lance realmente bonito (como o corpo de uma mulher). Ou entreter-se um pouco com o raciocínio tagarela das crianças.
Sentado é a estação a meio-caminho entre o estar de pé e o deitado. Ora, Iago sempre procurara estar de pé: frente aos outros, frente ao mundo, frente ao que desconhecia (aqui mais cauteloso), frente a si próprio. Durante muito tempo, deitar-se fora sempre a procura necessária do repouso, do apaziguamento quando não se consumia em infindáveis controvérsias internas. E era a antecipação do desejado repouso final, se possível com o som não distorcido de uma música magnífica, mas sobretudo sem dores a dilacerarem o corpo, esvaindo-se apenas no adormecimento.
Assentar-se. Assentamento, como se dizia da quilha dos navios – com estabilidade, firmeza de formas e de propósitos, incólume à espuma dos dias, como se espera do efeito de longas e variadas experiências.
Ou antes assentimento? De tudo o que está, incluindo o defeituoso e o inaceitável? Iago entrava já receoso nesses terrenos. De tanto procurar entender, estaria ele já a aceitar tudo como inevitável e devendo ser? Onde firmar agora a lança das convicções quando, não só o relativismo está na baila, como também o tresler da idade poderia estar a fazer o seu trabalho?
Por esta altura, o divino tentou aqui a sua sorte, mas sem sucesso. Em vez de uma porta resistente mas sempre arrombável, o que encontrou foi um biombo ou uma cortina (ainda por cima transparente), moldável e maleável aos dedos e aos ventos mas que seria difícil quebrar ou rasgar. Já não haveria lugar a novos dramas de Jean Barois.
Talvez o assentimento fosse um modo mais profundo e benigno de compreensão, de descoberta. Mas poderia muito bem significar apenas desilusão e, visto de fora, até por quem lhe prestava respeito, uma vulgar forma de traição.
Aí, estaria perto de passar do assentimento ao consentimento e isso, apesar de tudo, ainda lhe soava como um sinal de alerta.   

(Aviso desnecessário: Qualquer semelhança entre este conto e a realidade é mera coincidência.)


JF / 6.Mai.2017

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