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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Para quando a “grande reforma do Estado”?

Com maiores ou menores sobressaltos, a governação portuguesa lá tem conseguido acomodar as exigências externas de redução dos nossos desequilíbrios económico-financeiros e o sistema político gerar alternativas minimamente funcionais no quadro partidário existente. A aliança PSD-CDS apanhou em cheio com o “programa de ajustamento” a que o persistente défice orçamental havia conduzido. A “solução de esquerda” inventada pelo PS de António Costa tem tentado relançar a economia e a esperança “desenvolvimentista” que conforta as classes médias numa base diferente da “modernização” impulsionada por José Sócrates. Porém, para além dos “simplex” e dos “cortes cegos” na despesa, nem Paulo Portas nem qualquer outro governante avançou com significativas mudanças no aparelho do Estado e nas instituições públicas.
Aliás, as relações entre os dois maiores partidos portugueses andam tão tensas e desencontradas que não se prevêem para breve alterações no texto constitucional ou de leis estruturantes do sistema político. E, no entanto, várias das reformas do Estado que poderiam melhorar a sociedade portuguesa dependem desse consenso e vão, por isso, ficando adiadas.   

Muitas vezes as pessoas esquecem que a Constituição (ou conjunto de “leis constitucionais”, o que vem a dar no mesmo) não é mais do que uma lei contingente, fixada num determinado momento por uma momentânea relação de forças políticas, apenas com a diferença de ser “a mãe de todas as leis” no quadro do Estado-nação, pela sua posição hierárquica superior a todos os outros normativos nacionais (leis-quadro, leis-de-bases, leis ordinárias, decretos, etc.). É certo que os tratados internacionais, assinados e devidamente ratificados por dois ou mais estados, também se sobrepõem a toda aquela legislação interna mas têm de ser concordantes com o estatuído na Constituição. A especificidade e importância da Constituição deriva também do facto de ela conter – além de normas concretas próprias, geralmente destinadas a regular o funcionamento das instituições do Estado (governo, parlamento, tribunais, etc.) – uma definição única e exemplar dos princípios de filosofia política que enformam toda a organização do Estado-nação. É claro que há também constituições “regulamentadoras e programáticas”, como a nossa de 1976 (que ainda nos rege, com certos alívios), sendo essa a marca que foi deixada para o nosso próximo futuro por aquela precisa conjuntura histórico-política. Mas o traço distintivo de uma Constituição é, como referíamos, ela conter abreviados princípios acerca da filosofia que uma dada comunidade política territorial, soberana, deseja que sejam os reguladores e orientadores da sua vivência colectiva e da sua relação com terceiros. Porém, isto não significa que tais princípios sejam critério bastante (justamente pela generalidade das suas formulações) para julgar da conformidade da legislação ordinária (e da sua aplicação pelos órgãos de soberania e agentes do Estado) com o texto constitucional, na chamada função de “verificação da constitucionalidade”, que é sempre entregue a um órgão jurisdicional.
Os agentes políticos que fazem do “constitucionalismo” uma bandeira de acção (partidária, como aconteceu no nosso século XIX pós-1820, nos tempos da Ditadura Militar e depois de 1976), fazem-no com o mesmo uso instrumental com que são capazes de afirmar que, em certos momentos, a legitimidade supera a legalidade – o que é uma verdade, mas não com a leitura estritamente jurídica que aqueles lhe atribuem. E algo de semelhante se pode dizer do “soberanismo”, quando estão em causa os compromissos externos assumidos pelo Estado num determinado momento e que o vinculam doravante, apenas com as possibilidades de desobrigação neles próprios previstas. Aqui, está em jogo, não a “ordem superior” fixada por uma divindade ou um ainda inexistente (nem próximo) governo mundial, mas sim uma ordem jurídica internacional que, por muito que tenha sido descaradamente violada e trapaceada em incontáveis oportunidades, não deixa de ser uma das conquistas da Humanidade (a crédito do pensamento ocidental, note-se) para regular e dar algumas perspectivas de estabilidade, previsibilidade e segurança a toda a acção humana.   

Apresentamos abaixo algumas das principais reformas do Estado que, em nossa opinião (e repetindo ideias já expressas em outras ocasiões), poderiam ajudar a melhorar sensivelmente o seu desempenho, a benefício da colectividade (e não principalmente dos seus funcionários ou decisores).

No plano constitucional ou de leis exigindo maioria qualificada:
1 – Modificação da lei para a eleição de deputados da Assembleia da República, com dois objectivos: o de manter ou aumentar a governabilidade do sistema e o de melhorar a representatividade dos eleitos, certamente com redução do seu número, a introdução de alguma dose de círculos uninominais e, para estes, a possibilidade de candidaturas independentes.

2 – Supressão do Tribunal Constitucional e reformulação do Conselho de Estado, o primeiro substituído pelo Supremo Tribunal de Justiça na função de verificação da constitucionalidade da legislação ordinária e o segundo com maior representatividade institucional (no sentido de uma sugestão por mim apresentada em tempos, sob a designação de Conselho da República).

3 – Aproveitamento do clima intervencionista desencadeado pelo actual inquilino do palácio de Belém para fazer evoluir o modo de designação, competências e funcionamento do órgão executivo da governação para o que se poderia designar por um “presidencialismo de partido”, com o governo a ser atribuído ao partido votado maioritariamente numa segunda volta a que só acederiam os dois primeiros, e uma reconsideração das responsabilidades orçamentais do governo e do parlamento. Julgamos este procedimento preferível ao “prémio parlamentar” que alguns países agora atribuem ao partido mais votado em sistema proporcional. (O desaparecimento da figura do Presidente da República eleito por sufrágio universal ficaria implícito com o sucesso bem provado deste sistema, mas não seria automático nem urgente.)

Sob a alçada da legislação governamental/parlamentar:
4 – No que toca à Justiça, a despeito dos sucessivos rearranjos do mapa das comarcas e juízos, o fundamental seria rever as leis criminais e de processo. No código penal, tendo em conta que a sociedade actual se rege essencialmente por valores materiais, a maioria das penas devia passar a ser de natureza pecuniária (ou de trabalho obrigatório para os insolventes), reservando-se a prisão para os casos de risco para a segurança pública, pois este meio de punição não deixou de ser, essencialmente, uma “escola-do-crime”. E, neste domínio, haveria que enfrentar com coragem o problema da droga, que será responsável por mais de 50% das condenações dos reclusos que enchem as nossas prisões. Mas, naturalmente, este é um domínio onde cada país tem a sua acção limitada pelo contexto internacional. Poder-se-ão despenalizar os consumos e circulação de drogas leves – desde que haja uma acção social eficaz de recuperação das pessoas dependentes – mas não instaurar uma total liberdade neste sector, pela quase certeza de o país se tornar rapidamente num “paraíso do tráfico”. Por isso, haveria que empenhar esforços numa acção concertada, a começar pela União Europeia mas projectando-se o mais possível para o quadro da ONU. Quanto às leis processuais, o essencial era limitar as possibilidades de recurso e adiamento, que são um prémio para os ricos e um maná para os advogados (que deveriam perder o exclusivo de defesa judicial dos réus, em favor dos próprios).         
5 – Na administração autárquica, seria fundamental (e muito simples) “des-simultaneizar” as eleições para os diversos municípios (e freguesias), com a liberdade de elas próprias fixarem a duração dos seus mandatos entre 3 e 5 anos. Perderiam logo a carga de qualquer leitura política nacional que, de facto, não lhes devia estar associada. Depois, seria conveniente a simplificação dos órgãos municipais e da respectiva forma de provimento, bastando para isso aprovar o entendimento a que PSD e PS já haviam chegado aqui há uns anos. Finalmente instituir as regiões administrativas – as 5 já rotinadas, ou apenas 4 mais as duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, que lhes ficariam equiparadas – sem novos órgãos eleitos, mas apenas por delegação directa dos municípios de cada região. Quanto ao financiamento destas estruturas, a lei deveria determinar quais os impostos e taxas que, em exclusivo, lhes caberiam, fixando os seus limites quantitativos máximos e mínimos, a sua capacidade de endividamento e a responsabilidade pessoal dos autarcas em tais processos.

6 – Produção de leis para um mais rigoroso controlo financeiro das administrações públicas com vista a conter o despesismo e o endividamento-canga para as futuras gerações. Responsabilização criminal dos agentes políticos em matéria de corrupção, descaminho e maus usos dos dinheiros públicos, e de atentados aos direitos humanos e de cidadania. Dada a predominância global da economia concorrencial de mercado, reservar para o Estado, neste campo (incluindo as infraestruturas), apenas as funções de enquadramento jurídico, regulatória e fiscalizadora das actividades, sancionatória das violações ocorridas e, finalmente, de intervenção supletiva e em último recurso para salvaguardar interesses essenciais da comunidade ou a sua coesão social. Actuação reguladora também no que toca à qualidade do meio ambiente, urbanismo e habitação. Quanto à chamada administração autónoma do Estado, no caso das Ordens profissionais, estas deveriam ser (res)suscitadas para a promoção da mais alta qualidade do serviço que prestam à comunidade, e não para a protecção económica dos seus membros.

7 – Em concordância com uma indispensável revisão dos conceitos estratégicos nacional e de defesa-e-segurança, as Forças Armadas deveriam ser reorientadas para uma actuação mais autónoma mas disponível para cooperações internacionais (nos quadros Europeu, da NATO, da CPLP e da ONU), reforçando-se as componentes naval (em navios oceânicos e com um meio de projecção de forças na área euro-atlântica) e aérea (em meios de vigilância, defesa, socorro e transporte) e reduzindo-se a das forças terrestres, de três para duas brigadas (de 4 a 5 mil homens), uma apta à defesa do território, a outra pronta para uma intervenção além-fronteiras. As Forças Armadas deveriam efectivar uma especial cooperação com as forças de segurança, nomeadamente nos capítulos das “informações” e da ciber-guerra, bem como na articulação da acção da GNR com o Exército para o controlo do território e com a Marinha (e a sua Policia Marítima) na segurança da costa. E actuar ainda, quando necessário, no quadro da protecção civil.

8 – As forças de segurança – GNR e Polícia –, já hoje as mais numerosas entre os braços armados do Estado, deveriam ver resolutamente separadas as suas respectivas missões (sem quaisquer responsabilidades de investigação criminal, que voltariam a caber inteiramente à Polícia Judiciária): a PSP como única polícia urbana presente em todas as cidades e aglomerações importantes do país; a GNR (com menores efectivos) como reserva territorial, especializada no controlo dos espaços rurais mais ou menos desertificados (incluindo montanhas, rios, florestas, planícies e fronteiras físicas), mantendo uma pequena unidade de honras protocolares, em nome da República.   

9 – As instituições de Protecção Civil têm vindo a ganhar maior importância e deverão mantê-la, em prol da comunidade nacional. Este sistema continuaria a articular judiciosamente os profissionais, os meios e as estruturas da administração pública e o voluntariado que historicamente caracterizou o socorro de emergência aos necessitados perante o fogo e outros acidentes ou catástrofes; mas com fiscalização por entidade pública idónea para travar abusos e a sustentação de interesses ilegítimos. E não seria mau que se instituísse um serviço cívico universal (com prestação voluntária alternativa nas forças armadas ou de segurança) para os jovens cidadãos, instruindo-os em tarefas de utilidade pública desta natureza e contribuindo para a sua formação social e de cidadania.

No tocante ao chamado Estado social:
10 – O Serviço Nacional de Saúde melhorou consideravelmente a condição sanitária e qualidade de vida da generalidade dos portugueses. Mas, com os enormes financiamentos necessários ao sector, já temos hoje instalada uma oferta de saúde empresarial muito significativa. Esta coexistência vai continuar e provavelmente aprofundar-se e, nestas condições, exige-se do Estado que não deixe de assegurar “os mínimos” para o melhor-estar e a dignidade dos que sofrem, e que seja compatível com o que a sociedade está disposta a pagar em impostos, sem desperdícios nem favores aos “privados”. O ideal da “saúde gratuita igual para todos” parece hoje uma quimera social-democrata do pós-II guerra mundial.  

11 – No que respeita à educação escolar o diagnóstico não é tão claro, mas também aqui existe já a dualidade de prestadores e opções entre “público” e “privado”, em concorrência. Mas se a saúde influi sobre a demografia, a escolaridade afecta hoje a economia, sempre com efeitos dilatados no tempo. Por isso, atento aos desvios da desigualdade e da discriminação social, ao Estado competirá “pilotar o sistema”, sem necessariamente ter de arcar com a prestação desse serviço e assegurar totalmente os respectivos custos e desperdícios. Com as particularidades de a situação variar um tanto com o nível de ensino e o mais elevado deles estar intrinsecamente ligado a produção de ciência e tecnologia, que é hoje factor quase-imediatamente produtivo, e decisivo, na economia mundializada. E não se podem esquecer as responsabilidades públicas no domínio cultural (língua, história, património, etc.).

12 – Algo de semelhante em relação aos dois pontos anteriores acontece ainda no tocante à previdência ou segurança social. Assegurar “mínimos” compatíveis com uma noção (sempre discutível) de dignidade humana, parece ser o papel que as instituições públicas não poderão deixar de ter, através de uma redistribuição de rendimentos e transferência de recursos por via fiscal ou de quotização obrigatória, sem contudo ferir o incentivo ao trabalho devidamente remunerado ou constituir chamariz ilusório para os mais pobres do planeta.

Todos estes pontos serão arrasados por críticos de diversas proveniências, com ou sem fundamentação aceitável. Não tenho a presunção de estar certo nem estas soluções seriam as minhas preferidas, mas apenas as que me parecem possíveis e desejáveis de imediato. São um misto de “conservadorismo esclarecido” (que audácia!) com alguma dose de inovação e ousadia para mudar práticas enraizadas e afrontar interesses instalados.
Nas suas memórias sobre a segunda guerra mundial, o democrata Churchill critica sem complacência os efeitos perniciosos da política partidária e dos seus vícios demogógicos sobre o destino dos povos, tanto no plano interno como internacional. Dadas as suas raízes sociais, bom conhecimento da história e pertencer a um dos países onde o parlamentarismo ganhou maior institucionalização, compreende-se e louva-se a coragem da sua afirmação de que a democracia era, afinal, o “menos mau” de todos os regimes políticos conhecidos. Mas isso não impede que, nas circunstâncias actuais – uma época quase totalmente nova em termos económicos, tecnológicos e culturais, que reorganizou o mundo que ele ainda conhecera em meados do século XX –, se possam fazer esforços para encontrar modelos de uma democracia racionalizada, mais apta a responder aos novos desafios.


JF / 26.Ago.2017

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