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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Fecha o Verão, reabrem-se as rotinas


Está a encerrar mais uma temporada de Verão, que igualmente significa do tormento dos incêndios florestais. Desta vez com o mais pesado balanço de que há memória recente, com os 64 mortos registados em Pedrógão Grande ainda antes do início oficial da temporada e a maior área florestal alguma vez ardida em Portugal num só ano (mais de 230 mil hectares).
Como se compreende, aquele incêndio de Junho impressionou o país e gerou uma interessante onda de solidariedade mas, como era inevitável, a seguir veio a exigência do apuramento de responsabilidades e a querela política, apesar do quadro eleitoral autárquico não ser o mais propício para tal. Por esta razão e pela própria complexidade do fenómeno, o debate público rapidamente resvalou para as subtilezas das razões técnicas e jurídicas já fora do alcance da compreensão das pessoas comuns, que continuaram  a elocubrar em termos como: “isso é o interesse dos madeireiros”, “são os corporativismos em choque uns com os outros”, “eles não vão parar com os eucaliptos”, “os políticos são todos iguais”, etc. – percepções que não andam longe da verdade mas que são claramente insuficientes para um esforço de análise dos problemas e a definição de pistas para a sua resolução, sobretudo para o futuro a médio prazo. Neste sentido, entre tantos outros, realço o artigo do economista universitário Raul Lopes saído no jornal Público de 18.Jul.2017 ou a opinião  expressa no mesmo jornal a 7 de Agosto pelo não-especialista António Neto, cidadão atento e bem informado.
Já em Setembro do ano passado aqui tínhamos colocado um texto reclamando uma revisão profunda da política florestal e do regime de plantação existente – que imporia limitações ao direito de propriedade – e no Outono manifestámos algumas expectativas favoráveis ao pacote legislativo então apresentado pelo ministro Capoulas Santos. Agora, tudo foi de novo posto em discussão: não apenas aquelas questões, mas também a eficácia do Serviço Nacional de Protecção Civil, o SIRESP – “sistema-de-informação” de emergência que deveria integrar todos os dispositivos de segurança existentes no país (e note-se que aquela expressão significa um “complexo informático” só produzido por grandes empresas do ramo, neste caso bem conhecidas por boas e más razões) –, a competência e o grau de especialização dos bombeiros, a utilização dos meios aéreos, o desempenho da GNR e do “115”, a melhor adequação das espécies arbóreas às actuais condições climáticas e às características do nosso espaço rural, o papel dos meios de comunicação social, etc. Esperamos (quiçá ingenuamente) que, para além das diatribes partidárias e parlamentares, um razoável consenso possa ser alcançado quanto à orientação dos poderes públicos nos próximos anos, sem que cada governo se empenhe sobretudo em destruir o que o antecessor realizou, mas procure apenas melhorá-lo. Houve, porém, duas matérias que aparentemente ficaram fora da discussão: o problema do povoamento disperso em grande parte dos nossos espaços rurais e o significado (para nós, portugueses) da eficaz intervenção de grupos especializados de bombeiros espanhóis que acorreram com viaturas da Galiza, Estremadura, Madrid e Andaluzia para combater os incêndios de Pedrógão, Figueiró e Góis. Sobre isto me quero também manifestar.
Como fenómeno que é, em parte, global (devido ao aquecimento atmosférico) e internacional-regional (pelas semelhantes condições e continuidades da floresta mediterrânica), é normal e salutar que haja cooperação de vários países em meios de ataque a incêndios quando estes atingem proporções catastróficas, como foi o caso. Mas se o empréstimo de aviões-cisterna pesados já é habitual, não o é tanto a deslocação de viaturas e bombeiros-sapadores especializados (militares?) espanhóis que, pelo que se viu, tiveram uma intervenção decisiva para reduzir e finalmente extinguir as chamas que persistentemente lavravam no concelho de Góis, sobretudo. Fizeram-no discretamente, sem “espectáculo” e com grande eficácia, fugindo à “mediatização” como sempre deveria ser; e foram-se embora sem “honras” nem fanfarras, que o sul da Andaluzia estava prestes a requerer também os seus serviços. Sem qualquer laivo de “patrioteirismo”, não poucos se terão sentido envergonhados com esta prestação solidária, perante as manifestações de impotência e desespero que pudemos observar em tantos nacionais. Gracias, a nuestros hermanos! (que os seus dirigentes não deixarão de recordar aos nossos na primeira oportunidade que se lhes deparar, para daí tirar vantagem.)
Recordaria agora que, nesse anterior escrito, se afirmava que «o direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de florestação […] seja em termos de limpeza e manutenção […]. Todos os terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão […] deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental».
É possível também que a anunciada “bolsa de terras” possa vir a integrar a cedência graciosa, pelos proprietários, de matos e mesmo do direito de replantação de “árvores bombeiras” nas suas terras abandonadas por essas mesmas empresas concessionárias (talvez por prazo de 20 a 30 anos), que disso tirariam rendimento, no quadro de planos de ocupação arbo-agro-pastorial dos solos gizados por equipas de técnicos competentes.
Com envolvimento dos municípios, competiria sobretudo ao Estado o cadastro dos solos, a definição legal das condições de plantação e exploração e das normas de segurança para as habitações rurais, o concurso para as empresas concessionárias (não em PPP, mas sim em concorrência entre si no âmbito de áreas geográficas alargadas), a vigilância e coordenação do ataque aos incêndios (com meios próprios e do voluntariado) e a fiscalização do cumprimento de todos estes preceitos.
Dantes, as tropas apeadas ou montadas (por “vocação”) e os oficiais de estado-maior (por necessidade) conheciam muito bem o território nacional, sobretudo o mais acidentado, por ser menor a intensidade tecnológica do seu armamento e o terreno constituir, nesse caso, um elemento fundamental de sucesso ou de derrota. Hoje, são os autarcas quem melhor o domina, porém com a abissal diferença da sua fragmentação (quase sempre de costas voltadas para os concelhos vizinhos). A visão integrada do nosso espaço rural, com a acentuada diversidade que contém, exige agora que uma nova lógica de interesse público presida às grandes orientações estratégicas (actividade económica, propriedade fundiária, povoamento, meios de comunicação, preservação ambiental, segurança pública, protecção civil, etc.) e, seguidamente, à (re)construção de estruturas e processos organizacionais e à selecção do respectivo pessoal especializado (sobretudo ao nível dos principais decisores), bem como a uma adequada informação às populações. 
Obviamente, a questão do povoamento  está estreitamente articulada com o regime de propriedade de minifúndio que domina o centro e norte do país (mais o Algarve) e, além disso, com ainda outras variáveis como sejam o valor económico das plantações, a eficácia das redes viárias e de telecomunicações electrónicas,  a responsabilidade camarária pelo licenciamento de novas construções de habitação (e reabilitação das mais antigas), as características demográficas da população ainda aí residente e o seu apego a manifestações simbólicas ou culturais muito compreensíveis (ermidas, lavadouros, festas, cafés, etc.), por serem estruturantes da sua identidade social.
Porém, se naquela região do “pinhal interior” ainda subsistem algumas aldeias ou lugares com uma dimensão, população e identidade mínimas – que precisam de ser protegidas contra estes riscos com melhores acessibilidades, comunicações e proximidade de apoios de todo o tipo (bombeiros, segurança policial, emergência médica, correio, etc.) – basta andar cinquenta quilómetros mais para o litoral para que a paisagem humana se modifique inteiramente, com casas e casais isolados e dispersos pela natureza, que sempre se tornará impossível proteger em termos equivalentes, tal como, de resto, certas povoações de montanha onde sobrevivem miseravelmente alguns poucos milhares de rurais idosos. São três tipos de povoamentos distintos, a que a sociedade e o Estado terão de responder com soluções diferenciadas, a saber:
a) nas aldeias viáveis, assegurar as referidas condições de segurança e plena interligação com o tecido social mais próximo, sem contudo desperdiçar qualquer oportunidade para uma concentração populacional mais eficiente nas vilas e cidades vizinhas, que apresentam outras e melhores condições de vida, de dinamização económica e enriquecimento cultural;
b) no povoamento individual-familiar disperso, de pessoas com razoáveis ou bons meios de subsistência (incluindo as numerosas habitações secundárias), consciencializá-las da obrigação que têm de (custear e) cuidar da sua própria segurança ao quererem preservar esse seu isolamento e individualidade, recusando-se também os municípios a licenciar a construção de novas habitações em semelhantes condições; c) finalmente, no terceiro caso, é indeclinável dever da sociedade arcar com a responsabilidade e os custos dessas situações de isolamento de pessoas sem recursos próprios, incentivando a sua deslocação para a vila mais próxima e tratando-as, em todas as circunstâncias, como “casos sociais” que realmente são (geralmente vivendo da horta, da capoeira e de um subsídio público), fornecendo-lhes, no mínimo, meios de alerta e socorro de emergência, de simplicidade e eficácia comprovadas.
Da mesma forma que a floresta, a agricultura e a pecuária precisam de ser empresarializadas, já não sendo sustentáveis por mais do que uma geração as micro-explorações familiares tradicionais de parcelas pequenas e dispersas, trabalhadas com equipamento rudimentar. Empresarializado já o está, em parte, o sector vinícola e o olival (este, sobretudo no Alentejo, graças ao impulso espanhol), a pecuária intensiva (muitas vezes em degradantes condições de acondicionamento dos animais) e a produção industrial de rações. A isto se pode juntar a fruticultura do Oeste (cooperativizada) e o pequeno nicho associado na AgroBio. Aqui se têm registado os mais acentuados progressos na última década-e-meia. Mas a maior parte da área agricultável e de pastorícia terá de sofrer restrições e estímulos especiais para que não persistam as terras incultas e para que os pequenos-e-médios proprietários sejam melhor formados, devidamente equipados e descubram as vantagens do associativismo cooperativo na especialização das produções, no uso da maquinaria agrícola apropriada, nas colheitas e aprovisionamento dos mercados, na contratação de frescos com as “grande superfícies” comerciais, nos processamentos industriais e na exportação. As “denominações de origem” de vários produtos oriundos da pequena empresa familiar são tão um bom instrumento de progresso, certificação da sua qualidade e sustentação a mais longo prazo.
Há cinquenta anos, a “reforma agrária” foi um projecto nacional falhado, pela sua instrumentalização partidária e desadequação histórica – como ainda há pouco relembrou na televisão António Barreto. Mas o país continua à espera de uma reestruturação fundiária que viabilize a agricultura moderna de que se carece sem contudo, desajeitadamente, destruir os últimos traços de cultura camponesa que ainda dão sentido à ocupação que fazemos deste território.

JF / 21.Set.2017 

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