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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Os sociólogos ao serviço de quem?

Eu fui sociólogo profissional, investigando, ensinando e publicando durante cerca de três décadas. Já uma vez abordei aqui esta questão, recordando um antigo e famoso debate “franco-britânico” sobre the servants of power. Noutra ocasião, lembro-me de ter travado uma interessante discussão oral sobre a mesma questão, aliás com pessoa muito minha amiga; mas, como é normal, não chegámos a qualquer conclusão consensual.
Dessa conversa ficaram-me contudo algumas pistas e ideias vagas por explorar, que vou tentar agora retomar.
A primeira é, obviamente, a que de que, quem tenha uma boa formação teórica em sociologia (e necessariamente também suficientes conhecimentos de economia, ciência política, história e relações internacionais) estará em boas condições para funcionar como “conselheiro do príncipe”, isto é, como analista, redactor ou propositor dos discursos que a personagem ocupante do poder é constantemente obrigada a pronunciar, seja ela presidente, ministro, alto funcionário ou chefe autárquico. Felizmente, só ocasionalmente participei em algum desses círculos mas não me foi difícil perceber que, nos brain stormings que antecedem as principais decisões dos dirigentes, os mais bem preparados e incisivos dos peritos também presentes (sociólogos e outros) possam influenciar decisivamente a decisão final do “chefe”. A sua capacidade de influência não estará tanto na qualidade e abrangência dos estudos que anteriormente tenham feito ou consultado, mas antes na excelência da sua expressão e capacidade argumentativa. É certo que, neste domínio (tal como nas propostas de redacção de textos normativos), os juristas levam geralmente vantagem sobre quaisquer outros especialistas (dado que foram seleccionados e longamente treinados para tal). Mas, como estamos tratando de grupos restritos, tal “lei sociológica” pode ser aqui perfeitamente irrelevante: contam sobretudo as qualidades pessoais de cada qual – e só de forma mais distante a teoria e a investigação empírica que porventura foram usadas como justificação. Digamos de outra forma: as decisões do poder (que afectam todos os abrangidos pela sua autoridade soberana) são provavelmente, na sua maioria, resultado de um restrito jogo de interacções entre uma dúzia de pessoas (incluindo as ausentes mas que se fazem notar pelo telefone), cujos interesses e motivações inconfessáveis poderão ser mais de ordem pessoal ou interpessoal, do que propriamente em função do “interesse geral” da colectividade a quem irão ser aplicadas. Nestas condições, os sociólogos mais aptos e brilhantes em tais exercícios podem esperar ter um futuro brilhante à sua frente, apenas com o risco de, em democracia, a ocupação do poder supremo ser mutável, mas com a garantia de que os derrotados já não acabam degolados ou a apodrecer numa enxovia.
A segunda ocupação profissional mais indicada para os sociólogos é hoje a de jornalista (e, se for bem sucedido, de comentador). Aqui não é o poder que atrai, fascina e instrumentaliza os saberes do especialista: é outra coisa, mas que não tenho a certeza que seja mais nobre, embora o pareça. Trata-se, não de gerir o poder de comandar as massas, mas, de certa maneira, de orientar as massas contra o poder en place. Com alguma ingenuidade, pode tomar-se isto como a versão mais libertária da forma de intervenção política disponível na actualidade. Mas, na realidade, a actividade jornalística(-comentadora-publicitária) ao dispor dos sociólogos alarga-se em uma panóplia vastíssima de formas, modalidades e efeitos que ela pode vir a tomar e, em seguida, a chegar, enquanto tal, aos públicos. O holandês Pim Fortuyne, por exemplo, usou os seus saberes sociológicos ao serviço de uma intervenção política situada à extrema-direita. Muitos dos nossos melhores profissionais da imprensa (escrita e falada) conseguem ter o dom de parecer neutros e imparciais nas disputas que atravessam a sociedade e estruturam a vida política quando, cuidadosamente analisados – nas entrevistas, editoriais ou textos de comentário – raros são os que não pendem para um dos lados do conflito. Quanto aos sociólogos-jornalistas menos elaborados, a sua preocupação irá hoje sobretudo para a manutenção do seu posto de trabalho e alinhavam as suas intervenções de acordo com o que lhes mandam fazer e lhes parece mais conforme àquele objectivo. Finalmente, numa versão mais sofisticada, é hoje corrente os jornais (e outros meios informativos) basearem as suas notícias em “estudos”, normalmente carimbados com garantia académica. Mas aqui, de duas, uma: ou o “estudo” é de fraca valia, mereceu a duvidosa aprovação de um júri distraído ou de conveniência e trata-se, no fundo, do esforço de divulgação da “tese” de um “doutor(a)” pleno de ambição e poucos escrúpulos; ou é um trabalho científico sério que apenas foi lido, mal e apressadamente, pelo jornalista, o qual procura tirar de algumas das suas passagens as afirmações que lhe parecem mais “bombásticas”, susceptíveis de títulos atraentes para o grande público.
Quer como “conselheiros do poder”, quer como “fazedores de notícias”, há evidentemente lugar para que sociólogos bem formados e de forte personalidade realizem desempenhos profissionais sérios e produtivos. E alguns exemplos concretos poderiam ser apontados. O mesmo se pode dizer daqueles que fazem a sua vida activa nas empresas e em instituições públicas ou de solidariedade social, sejam elas laicas ou de inspiração religiosa.
Porém, no que respeita à dualidade (e confusão) entre ciência e intervenção política, há muito que fui impressionado pela frase com que uns editores espanhóis intitularam uma antologia de textos do doutrinador anarquista Kropótkine que tratava de questões de Estado, históricas e revolucionárias próprias do século XIX, nestes termos: «La sociedad fue primero». E apostaria dizer que, acima que tudo, onde a vocação do sociólogo mais plenamente se realiza será no seio de institutos de investigação de reputação bem estabelecida, onde a autonomia (devidamente regulamentada) da escolha dos objectos de estudo, da orientação dos projectos, dos responsáveis e dos investigadores esteja plenamente assegurada.
Fiquei algo incomodado por um artigo publicado na imprensa por Boaventura de Sousa Santos  (“Em defesa da Venezuela”, Público de 29.Jul.2017) no qual se proclama defensor da “revolução bolivariana” (criada por sucessivos pequenos “golpes” institucionais do militar paraquedista Chávez e prosseguida por outros do seu “perroquet” Maduro) e do progresso social por ela logrado para os “descamisados” (educação, distribuição do rendimento, etc.), revolução que, segundo ele, tem vindo a ser combatida pela Casa Branca (incluindo Obama), pelo “império petroleiro” americano (cujos interesses são indesmentíveis, mas não como um diabo pintado) e pela comunicação social do Ocidente (aqui, provavelmente com uma parcela de razão, mas não sob a batuta de alguém). Se no caso do PCP só se espantará quem já estava embalado pelo “democratismo” quotidiano de que dá mostras em política interna (por vezes com razão e bons resultados porque “eles não brincam em serviço”), no professor de Coimbra, arauto de uma sociologia crítica nos areópagos académicos, esta sua postura parece assemelhar-se à de um Chomsky que aproveita todas as liberalidades do sistema americano para descarregar a fundo sobre os crimes e pecados deste e juntar a sua voz à de qualquer um que o queira destruir – de Moscovo ao “Crescente”, da China a outras potências menores –, não lhe faltando razões para isso (nem faltarão nos tempos mais próximos, com a “cabeça agitada” que agora manda em Washington). Valeu a demarcação feita alguns dias depois na mesma folha por Elísio Estanque para “salvar a honra do convento”.  
Outras armadilhas povoam o terreno do pensamento científico contemporâneo. Ao acaso de leituras dispersas, retive referências na imprensa a Jacques Le Gof, sobre «o delírio narcísico do indivíduo pós-moderno» (Visão, 14/20.Ago.2914), ou de João Pedro Marques sobre «A ditadura da memória», a propósito do “politicamente correcto” no caso das abordagens históricas do fenómeno da escravatura (inter alia, Público, 1.Set.2017). Num parêntesis, diga-se que, para entender melhor o regime português da escravidão e da sua abolição, não pode deixar de reflectir-se sobre as obras recentes de Arlindo Manuel Caldeira (Escravos em Portugal, 2017), Miguel Bandeira Jerónimo (Livros Brancos, Almas Negras, 2010) ou do próprio João Pedro Marques (Os Sons do Silêncio, 1999).
Também li há pouco o arranjo romanceado de Catherine Clément O Último Encontro (entre Heidegger e Hannah Arendt), uma espécie de “livro de vida” para um ocidental inquieto que viveu o século XX. Além da exploração de outras valências e dimensões do pensamento e da acção humanas, esta excelente obra mostra-nos os equívocos, riscos e ilusões em que facilmente podem cair os pensadores (mais talvez os filósofos do que os cientistas) que se aventuram incautamente pelos terrenos da intervenção política. Mas, como bem viu António Pedro Dores (em Anarquismo, Trabalho e Sociedade, 2017: 619-632), a definição weberiana d’O Político e o Cientista não chega para resolver este tipo de problemas.

JF / 13.Out.2017

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