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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Não falhar o alvo

Turgueniev, em Pais e Filhos, fala dos nihilistas russos da geração de 1860 e Dostoievksi desenhou literariamente em Os Possessos um quadro dos jovens do movimento revolucionário populista – os narodniki, os “amigos do povo”, historicamente analisados por Franco Venturi na sua obra Il Populismo Russo – que, nos anos seguintes, enveredaram pela estratégia do terrorismo, visando literalmente aterrorizar os principais vultos do Czarismo e os seus homens-de-mão por meio de atentados à bomba e à pistola. Também Kropótkine (militar, geógrafo e doutrinador do anarquismo, nascido com sangue real) refere largamente este ambiente do radicalismo eslavo nas suas Memórias de Um Revolucionário. Despotismo autoritário e violência justiceira parecem estar inscritos na alma russa.
Entre muitos outros casos, é em 1881, à sétima tentativa, que o Czar Alexandre II é mesmo abatido por um membro do grupo Narodnaia Volia (A Vontade do Povo), o qual morre também vítima da bomba. Para ter a certeza de não falhar, fizera-a detonar no curto espaço que mediava entre si o monarca, que deambulava já desnorteado por uma primeira explosão procurando socorrer os feridos.
A repressão é impiedosa e a Okrana (polícia política) conseguirá muitas vezes infiltrar estes grupos, instruir agents provocateurs, prender e fazer enforcar ou deportar muito dos seus membros, geralmente jovens (homens e mulheres) de famílias aristocráticas ou burguesas, revoltados com a extrema miséria em que vivia o povo russo camponês ou habitando os subúrbios das cidades. O desmantelamento do movimento populista não terminou, porém, com os atentados. A partir de 1902, os Socialistas-Revolucionários enveredaram também por esse caminho e mesmo o Partido Operário Social-Democrata Russo (marxista, onde viria a pontificar Lénine) não desdenhou por essa época financiar a sua propaganda dirigida aos operários com “expropriações” obtidas à mão armada e execuções de agentes-duplos ou dos informadores pagos pela polícia.
O desprezo pela vida (ou o fanatismo) de que deram mostras muitos destes revolucionários impressionou vivamente os grandes romancistas russos da ápoca. Não me lembro bem e não fui verificar, mas tenho ideia que algum desses reputados escritores compôs uma situação em que, no momento de accionar o seu engenho sobre o Czar (ou alguém da sua esfera), o bombista vê interpor-se uma criança e, num repente, lança-se ele próprio sobre a carga explosiva, ficando despedaçado mas poupando assim os circunstantes. De facto, relata Bernard Thomas em As Provocações Policiais que, numa primeira tentativa para matar o odiado grão-duque Sergei, tio do Czar e comandante militar de Moscovo, o revolucionário Kaliaev «não teve coragem para levar a sua àvante» pois «quando ia para lançar a sua bomba, o jovem estudante a quem chamavam ‘o poeta’ viu ao lado do grão-duque, sentada no carro, a sua mulher e os dois filhos». Porém, «a segunda operação, no dia 17 de Fevereiro de 1905, pelo contrário, teve êxito total. Kaliaev, impávido no cadafalso, será enforcado em 10 de Maio do mesmo ano» (tradução do original francês de 1972: p. 229).
A 28 de Fevereiro de 1908, os nossos republicanos Costa e Buiça não estiveram com meias medidas e mataram no mesmo momento o rei Carlos e o príncipe herdeiro, apenas falhando por pouco o infante cadete, sabendo que sucumbiriam logo a seguir sob as balas de polícias e “municipais”, como aconteceu. O facto dividiu ainda mais as opiniões, mas é certo que contribuiu efectivamente para abreviar a queda do regime. Porém, numa revista anarquista também se escreveu que: «Baqueiam os tiranos, morrem os poderosos, exterminam-se os grandes. Mas fica a Tirania, subsiste o Poder, continua a Grandeza. Homens: tendes que fazer obra mais grandiosa do que mudar regimes, criar leis, substituir indivíduos!» (Lopo Gil em Novos Horizontes, nº 13, 15.Abril.1908). Prevenção inútil, pois dez anos após, sob as balas de outros republicanos seus adversários, caía o presidente-rei Sidónio Pais – figura que Marcelo Rebelo de Sousa não se esquecerá de relembrar, de maneira inteligente mas significativa, no centenário de tais acontecimentos.
A pulsão-de-morte que animava estes tiranicidas era, a seus olhos, justificada pela ideia de acabar com a opressão e a miséria que impendia sobre o povo – o qual, aliás, muitas vezes não se sentia oprimido e aceitava a desgraça como uma prova divina. A racionalidade (vindicativa e justiceira) estava então do lado dos revolucionários e a crença fatalista do lado das massas. Hoje, no caso dos terroristas islamitas, é o fanatismo religioso que os anima, enquanto a racionalidade (securitária, instrumental e sequiosa de bem-estar) se encontra na larga classe média-baixa que compõe a maioria das nossas sociedades.  
É importante não falhar o alvo. Mas, ainda mais, não se enganar de adversário.

JF / 8.Dez.2017

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